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sábado, junho 21, 2008

Carta a Guerra (II)

“escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu” – Clarice Lispector

Caro Guerra,

Confesso que cada carta sua é uma grata surpresa, embora saiba que venham e que são sempre deflagradas por um assunto qualquer que tenhamos debatido, sou pega sem sobreaviso e tomada por um sentimento de euforia insensato, que gradualmente é substituído por um vazio imenso, quebram-me a quietude as indagações ferinas que expõe. Um frio percorre a espinha dorsal nessa transição, um pressentimento de que não passarei ilesa pelo escrito.
Apetece-me a confiança e sinto a liberdade de compartilhar dessa loucura sã que traz em si, mesmo sabendo que é muito mais que isso que nos faz próximos, temos um desenraizamento com a realidade convencional que o inconsciente coletivo teima em impor.
Quando estou sob o efeito de suas confissões cotidianas, que de tão comuns fazem-me estar presente sinestésica em suas vicissitudes, compadecida de sua quase ternura, permutando experiências contigo, querido amigo, e deixo-me levar no sentido literal da palavra.
Usamos a linguagem para: fotografar situações corriqueiras, sem disfarces, alegorias ou embustes; enfatizar as ironias das convenções sociais; descrever momentos triviais, flagrados por um olhar intrínseco, sem encadeamento cronológico ou lógico apenas para exaltar nosso egoísmo desgraçado, e essas semelhanças aproxima-nos.
Sendo franca no cerne da palavra, o que me move é a intriga, o desconforto, a inveja, o ódio, o frisson, a desaprovação, o desafio do entendimento que causo no outro (leitor). Aí reside minha excitação egoísta pela escrita, meu gozo narcisista incurável. Mas o ler um bom texto é o mais próximo de empatia que pude alcançar e proporciona-me isso. Só sei ser sinestésica, onde o impalpável, o intangível, o impreciso merece atenção redobrada, pois a realidade não é meu ingrediente preferido, esse mundo circundante, cíclico, repetitivo, causa-me náusea e tédio.
Pouco me importa o pano de fundo, se o negão do sebo, ou se Mirisola em parada gay, jogo minhas fichas todas na ambigüidade da interpretação, na fuga do real para extirpar ou exaltar a beleza do feio, num caráter que de tão simbólico toma ares cinematográficos, mas não como superprodução americana e sim como aqueles filmes “trash” que tanto se assemelham com a realidade burlesca.
Não nego que ser um escritor do sexo feminino me favorece em alguns sentidos, até por causar curiosidade, desdém, estranheza e tesão em quem me lê e não se engane supondo que não uso isso ao meu favor, pois uso. Mas em alguns momentos me subestimam, “escrita de mulherzinha”, “mulher não entende disso” ou o pior, “está escrevendo como homem”, (é mole?) como se escrever como homem seja superior a escrever como mulher, os absurdos humanos.
Admiro sua força na prosa intimista e consternada, ao tratar de acometimentos existencialistas, destilados em primeira pessoa, confessional, ao dissecar a temática angustiada e insatisfeita, lembra-me Sartre, mas sei que não gosta de comparações.
Por tratarmos com intimidade lúcida a dialética do frenesi, explicitando fluxos de consciência salpicados de narrativas referenciais e mentiras deslavadas, em descontinuidade temporal, num jogo sádico com o leitor, somos tomados pelo que não somos, o que às vezes nos diverte. Não tenho pudores em ser sincera com relação à brincadeira séria que é escrever. Sei que prima, como eu a dignidade da literatura, sem ser puritano (o que não somos de modo algum).
O que me parece mais evidente é que debulharmos nossos conflitos pessoais nos afeta profundamente, pois esse derramamento em cada palavra proferida é uma castração de sentido, não somos absorvidos com a intensidade que desejamos (na maioria das vezes) e ainda nos pegamos insatisfeitos com os estereótipos que formam ao nosso respeito, já deveríamos estar acostumados com o fato de que o entendimento passa por empatia e conhecimento de causa.
“Como se colocar no lugar do outro e sentir algo que não se tem a mínima noção do que seja?”
“O inferno são os outros”, como já disse Sartre, mas assumo o meu inferno pessoal, intransferível e a minha completa ignorância dentro do universo estrangeiro.
A compreensão, o esmiuçar cognitivo alheio não é tarefa fácil, embora sejamos claros, confessionais, quase simplórios por nos mostrar (ou não) em aspectos cotidianos e comuns a maioria das pessoas, somos introspectivos e devotamos cargas emocionais, por vezes, pesadas demais para os leitores mais superficiais ou menos atentos. Se o entendimento passa pela letra impressa e depois pelo outro, creio ser necessário que eu aprenda uma forma de trazer o leitor à minha esfera com palavras, esse conduzir tão natural em sua escrita ainda é complicado para mim.
Não sinto necessidade de explicar minhas particularidades para você, pois há transparência em nossa relação, enquanto escritora-leitor e vice-versa. Busco a desenvoltura consciente que você apresenta, a segurança de palavra e significado que imprime, sem amarras e sem medo.
Quanto a sua revolta pessoal, nobre amigo, creia-me nunca te abandonará na totalidade, a não ser que você se entregue, mas te vejo como Estela, uma personagem minha do romance “Sob o olhar de Cecília”, que mesmo sem saída grita a plenos pulmões que está viva e que continua lutando.
Deixo-te por aqui, sem mais delongas ou dissertações, certa de que os caminhos mais árduos são os destinados aos inconformados como nós.
Grata pelo carinho,

Larissa Marques, 09 de julho de 2008.

sábado, março 15, 2008

Carta a Guerra

Caro, Guerra,

Sinto-me muito compadecida das dores que esgarça em sua prima-carta a mim e tentarei decifrar o que está por trás dessa sua máscara da canalhice que insiste em sustentar. Até o maior dos canalhas já curvou sua espinha ao amor, Henry teve sua June, Anaïs teve seu Henry e porque não assumir que ambos amaram a mesma June e assim por diante, como aquele poema de Drummond que citava uma “Lili que não amava ninguém”, haveria um amor secreto, mal resolvido, não comprometido ou proibido? Como afirmar que não há amor?
Não creio haver um ser polarizado à esse extremo e como já me confessara a boca miúda, esse seu jeito malvado, sarcástico é uma maneira de revidar as dores que já te causaram, mas será que ainda não causam, estaria imune a tudo?
Mas tentando encontrar o cerne do que te moveu a me escrever nobre escrita, creio que seja o mesmo que me moveu a responder-te, a curiosidade. Como é inconcebível a mim existir um ser como te pinta, devo ser objeto de curiosidade aos teus olhos. Ou talvez sejamos óbvios demais, tanto que nos dissimulamos em primeiras pessoas, personagens que talvez queiramos alcançar.
Aqui, Seu Antônio e Dona Edna são donos da mercearia mais próxima de minha pequena propriedade, me conhecem por nome, e por sobrenome pela conta da caderneta de acertos de fim de mês, faço as compras e o filho deles vem trazer até dentro de minha cozinha, outro dia eu tão cheia de trabalho o menino me perguntou: “- dona Pagu, quer que eu guarde os frescos na geladeira? - Veja e diga que não é gentileza, se não há amor nesse pequeno ato!
Nem mesmo aqui estamos livres das modernidades, há uma drogaria em cada esquina e o posto de saúde distribui camisinhas e pílulas gratuitas a todos os moradores cadastrados ali. É fácil adoecer, pois agora há entrega a domicílio.
Minha avô é enfermeira, meu avô dentista e moravam numa fazenda separada por uma ponte e cinco quilômetros do vilarejo mais próximo, isso há uns sessenta anos atrás, eram eles os médicos da região, não existia penicilina, pensa que as pessoas ficavam doentes como ficam hoje? Davam xarope pra tudo e pinga para extração dentária e era aquela profilaxia que salvava o povo de toda região.
Não creio que acredite mesmo que eu viva em uma redoma ou em uma estância, como os sanatórios de antigamente, conheço bem as tais biscates e não acho nada feio o que elas fazem, pois é exatamente o que fazemos todos, nos vendemos a todo momento, para um emprego, para o gerente do banco, para o professor da faculdade, para o escritor que admiramos, talvez alguns até sem saber, inocentemente, diria. Se é que essa palavra pode ser usada em nossa raça após os dez anos de idade, ou até antes disso. Vi em algum desses programas da Discovery que aprende-se a mentir com quatro anos.
Numa família como a minha, vinte e um tios maternos e dez tios paternos, é difícil encontrar uma anima que não se encaixe em um deles, ou em meus oitenta e seis primos primeiro, entende? A raça humana me cerca em família, por isso tento um pouco de isolamento,conheço de cor e salteado esses mundinhos provincianos!
Aos fatos cotidianos brindo com sangria e Nelson Rodrigues.
Lembra das biscates? Acho que já fui uma e convenci um resoluto solteiro a ficar comigo, porque eu o amava, e nos casamos de papel passado e tudo. Não pense que usei o velho truque da barriga, porque esse não funciona mais, há mais filhos sem pai e sem mãe, criados por avós, tios, abandonados e em casas de adoção, do que sonha nossa vã filosofia! E nessa era da falta de amor pelos filhos e não vou nem citar esse que a mídia está veiculando para fazer um marketing familiar, pois a filosofia é: “apedrejem as putas, os fariseus com seus rabos e esqueçam os meus!”
Já tive vinte quatro anos, já fui viçosa, cheirava como uva e já julgava saber de tudo e ser inatingível. Não que tenha mudado muita coisa, além da lei da gravidade. Sou uma balzaquiana, me cuido e cheiro bem ainda, mas as coisas em minha cabeça mudaram muito, talvez pelo fato de ter uma filha, a vida deu-me sela, cabresto, convenções e chicotes, o que não me impede de fazer o que gosto, o que quero.
Não estou minimizando os problemas, nem as bandalheiras humanas, elas existem!
As mulheres mentem, mas os homens também! Brincamos de meu amorzinho, mas ama-se de verdade também, mas como nada é para sempre e nem todos encaram isso. Vive-se de aparências e as máscaras por vezes são mais confortáveis que nossa cara nua, sim!
Não só os poetas e loucos mentem, nós temos coragem o bastante para admitir isso.
Por isso meus amores são os poetas, os que brindam e comungam com a palavra sem desferí-la como arma letal, machucam-nos, sim, mas a dor é mola humana.
Se nos mudarmos para Londres, para Paris, ou para o quinto dos infernos, que seria a nós mais apropriado, seria tudo do mesmo jeito, só que em língua diferente.
Se não sangramos, se não sofremos, se não choramos, se não rimos, se não amamos, que seria a vida, meu caro amigo das letras?
O que seria da nossa escrita?

domingo, janeiro 27, 2008

O mal do homem

O homem traz um defeito enorme em si. Quer quebrar a verdade do outro com a sua. Como se a sua pedra fosse mais firme e mais verdadeira que a do seu próximo.