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segunda-feira, janeiro 09, 2012

uma lembrança para Godot

contido

não importa por onde começamos ou se há como rasgar tudo como um roteiro mal escrito e colar as partes de modo contínuo e que faça algum sentido, se é que isso importa, pois no fim nada mais é sentido mesmo. mostre-me que está vivo e me faça sofrer ao invés de gritar de tédio. não há vítimas aqui, entreguei minha cara a tapas e o corpo aos vermes e antes que algum deles me tome como morta mostre-me do que é feito, o que é real e feio, tudo que eu nem queria ver e eu choraria por todos os outros se tivesse aprendido a chorar por mim.

confissão

quero preencher meus dias com literatura de boa qualidade, mas sem me preocupar muito com isso. passei anos de minha vida me prendendo ao fato de escrever algo bom e admirável. hoje vejo que a simplicidade habita as coisas mais belas que já toquei e como tive e tenho muitas coisas assim, sei que posso transcrever da maneira mais simples que conheço, uma vida profunda e repleta da matéria de que sou feita.

ressaca

para dois seres sensíveis e machucados meias palavras não cabem, então a tarde caiu leve, nos embriagamos com Manoel de Barros e sorrimos. a noite correu falante, pouco álcool e muita poesia, para dois poetas o bastante. a madrugada reservou um banho de piscina e a lembrança de tantos erros, copos vazios e almas cheias. ao amanhecer chuva forte e janelas abertas, Neruda e Pessoa molhados no chão. palavras encharcadas e inteiras.

baldio

quem é esse homem que brada e berra à procura de redenção e ainda se sente tão preso ao ego? a quem esse mesmo homem pede quando suas tábuas somem, enquanto seu bote afunda? outro dia, observando você dormir entendi quem é esse náufrago que descansa sobre minha cama, entre meus lençóis. compreendi a quem ele recorre quando outras mãos falham e nada mais pode salvá-lo.

suor

acordei mais cedo que o de costume, aliás não dormi mais que duas horas...

nessas fases de pouco sono e literatura transbordando pelos poros, lembro-me de que matéria somos feitos.

tenho amado você nesses dias. não há porque esconder o sentimento que salta aos olhos e enriquece as palavras.

¾

revirei as gavetas da escrivaninha hoje, procurando um texto que jurava ter anotado, mas na procura em algum momento me convenci que não havia feito. e sem encontrar o que não passava de mera miragem de minhas lembranças encontrei um retrato seu, um bem pequeno desses três por quatro que nos mostram exatamente como somos, livres de adornos ou sorrisos mascarados. esqueci-me do que poderia ter escrito naquele pedaço de papel que não existiu e sorri, quase me confidenciando algo que sempre soube. que meia dúzia é mesmo seis, que uma dúzia é dose e que não se troca três por quatro e trocamos.

vapor

senti sua falta de uma maneira que jamais senti. seu silêncio acompanha-me nos banhos matinais que batizo com seu nome, quanta ternura posso encontrar num banho morno? sim, pois o que ferve não é a água e o que fere não é o não dito. o espelho estava embaçado e tirei a toalha que me envolvia para me ver melhor, nunca vi meus olhos tão opacos como agora.

insônia

não dividi meus segredos, pois repartir tira-me o sono. não direi desaguei meus engodos e que em algum momento abri meu coração. nunca achei justo sujar águas claras em falácias pernoitadas. foi-se o tempo que dava espaço para estrangeiros, que apenas esquentam a cama e na manhã seguinte abandonam minha morada. mas saiba que me dói ainda a lembrança de vê-lo sair. foi único que partiu deixando-me suas lágrimas em meus olhos.

paramare

não farão falta as flores de plástico que deixara sobre o balcão, mas falhou na noite passada. o relógio batia insistente a melodia que já sabemos de cor. pobre da moça que encontrá-las e enfeitar com elas o coração. a jardineira daqui não é obstáculo, nem foi colocada ali como um adorno de janela, amado. é só um lembrete de como tudo é breve e belo, um suspiro perfumado de vida, paraísos artificiais. não arrancaria nenhuma delas para você, trazem a essência rara das horas que perco ao regá-las. tempo que não temos para o agora.

alento

as coisas têm nos afastado, não é querido? o coração está bem, mas não consigo parar de fumar, o que é ruim. mas o que não é? estou amando, como sempre... coração vagabundo, como diz Caetano! me divirto com meus mancos, como sempre e a saudade de você é enorme, tem o dom de me reanimar! meu texto de Kerouac está aqui, crescendo e crescendo, como um diário de bordo mal escrito e pouco reverberado. saber de sua vida é uma tábua de salvação, um arquipélago baldio nessa vastidão de mar revolto! pesa-me a idade e os sorrisos já estão gastos quase tanto como a pele, não tenho o mesmo visco. ando até meio aborrecida, pois as coisas, quando convalescemos, se tornam mais lentas e monótonas. mas não me queixo a vida é gueixa querendo se dar!

inércia

decerto a mansidão do deserto se curve à imensidão das águas, mas enquanto não, seco. é o calo em desalinho, forma obscura de um tempo vão. onde não há amar ou fúria, onde se cala a devassidão. esse seu rosto cálido, descrito em conta de arrimo é só a fuga de um querer pobre que não quer cura. decreto é a luxúria de se entregar a outros corpos enquanto só se deseja a solidão.

desilusão

mostrou-me a realidade turva para uma manhã chuvosa, independente da transa da noite passada, não com você, faço odes poéticas ao que vivi e se é a isso que se resume toda a histeria e febre humana: "uma boa e bela foda", que seja! e se ela vier bem acompanhada da ilusão, de bebida barata e promessas frívolas, melhor ainda! quem já teve o corpo rasgado não só por falos, mas também por faca afiada não se daria ao luxo do amor puro e imaculado. faço coro, é boa hora para um café amargo, meu amado!

ainda o café

acusa-me, amor! sim, admito, sou leviana, pueril e me prendo ao que seja leve e despretensioso. se uma xícara de chá esfria tão rápido e alguns depois de frios não conservam o sabor e a fragrância, posso ser assim. não pedirei desculpas por meus erros, ou pelo que me marca única, somos assim vãos. nada me vale mais que viver, o que me move é lembrar depois. serei uma velha chata e enquanto isso não acontece, tomo o café quente e amargo que me serviu a pouco. sua essência ainda permanecerá, pelo menos por algum tempo.

horizontes

sou alucinada, pois admito que há tons e tons. e onde uns distinguem apenas o branco e o negro, o contraste do papel com as palavras de poeta qualquer, eu vejo cores. renega o que sente, esse rubor nas vísceras, essa paixão desesperada que não ousa relatar e faz-se míope. deixo que furem-me os olhos mas não nego a fúria, dessa que se enxerga vermelho em manchetes de crimes passionais, amarelo em classificados de domingo e verde do fundo de amanheceres quadrados dentro de garrafas vazias de bebida.

lamento

quando saí de sua casa, naquele domingo fatídico, as coisas desabaram sobre de mim, encobrindo parte do que sou e todos os meus passos. antes do avião alçar voo e me trazer de volta à rotina, os pulmões esvaziaram e as palavras calaram num só grito, até o fim do fôlego e com o passar dos meses desisti de chamar. tudo que via era brisa sua vindo em minha direção e disparando os alarmes de solidão. com o tempo não havia mais vento à espreita ou esperas furtivas, só há agora esse silêncio aterrador.

despeito

para que serve o amor, afinal? uns diriam que serve para resgatar almas perdidas e trazer o milagre da auto-aceitação. outros diriam que serve para inundar os corpos de hormônios, feromônios, suor, odores desagradáveis e satisfação celular. para tantos outros um amor só serve para curar outro. a partir de hoje, me entregarei ao mau gosto barato, desses vendidos pelas putas e suas meias arrastão furadas, em becos escuros e pontas de rua, afinal nunca duvidei que nasci para as sarjetas.

benzedura

é urgente que se cale a palavra, sim essa que desbota ao sol do meio-dia da mesma forma que descolora na boca da noite. essa que embolora em minha língua enquanto a sua não chega entre meus seios. que me tenha em silêncio, pois ele é bento. e peço que não deixe que as mulheres de Chico morram em mim, assim como aquele amor que cantou Vandré, o refrão que dizia que a tristeza não é de amar. os lençóis desarrumados só se vingam das horas de espera no portão e ambos silenciosos são o retrato desses olhos tristes, mas não vencidos. o que perdura é o querer, nada além dele vence as escadas da vida e a cadeira do alpendre que dá acesso à sala. e quanto tempo ainda hei de esperar para que rompa os meus terreiros livres e veja a saia da nega rodando e rodando?

pílulas azuis

viver nesses tempos é perigoso para a saúde mental, tenho muitos conhecidos e o que muda é apenas o tipo do vício, como se houvesse remédio para se adaptar. dourar pílulas faz pessoas melhores? pensar suavemente agrada a todos e ser polido é mais que escolha é coerção. o que dizer em assembléias de condomínio? como abafar os gritos para não acordar seu vizinho? cada silêncio imposto é mais uma morte que chega sem abalar a ordem pública. tudo que é óbvio demais e passa batido, qualquer dor ou lacuna pode ser preenchido por tarjas preta. tenho amigo que desistiu de ter opinião própria, que chora à noite escondido, perdeu sua libido e faz tratamentos contra a falta de ereção.

paradoxo

é bem o que era, a liberdade de ter o que quisesse e se sentir um escravo daquele par de pernas e dos desejos que habitavam entre elas. não há vilão em história alguma, são pessoas procurando alcançar aquilo que se perdeu há muito tempo que mal se lembram se existiu realmente. humanos, o mais humanos possíveis é assim que todos são, com preâmbulos, enredo e notas finais e talvez um medo de si mesmo ou uma breve insegurança. não existe ninguém cem por cento seguro, por mais que se profira em palavras, isso é um erro de juventude, achar que pode contra tudo, inocência.

exceção

e bem dito que pouco faria diferença, se tudo é mesmo em vão, exceto a dor. já dizia Schopenhauer, _ “Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra". sim, e que venham os crentes dizer que é mesmo blasfêmia não ostentar um deus displicente e sádico, que coloca suas crias à mendigar, se ferir e se matar a pretexto de aprendizado, aprender pra que? aprender por que? se a via de regra pode mais quem faz pior. não pedi para ser e mesmo assim sou, como meus filhos o são e perpetuam a tristeza de meus olhos, tudo é vão, exceto a dor.

sem conforto

não direi que lhe avisei, não vale a pena espezinhar quem já está no chão e descobriu a friagem das certezas de não ter nada, de não ser nada e ainda assim sofrer. nem repetirei fórmulas de felicidade romântica que agradariam seu coração cansado de tentar amar. nem ao menos sorriria pra você e o confortaria com um conselho amigo. sabe bem que não sou dessas que enganam, mas também não seria honesta se não dissesse que me fere vê-lo dessa forma, tão vencido e entregue ao caos. já passei por isso, meu querido, sei bem o que é a dor e na carne da gente a chaga é muito maior.

déjà vu

a lembrança que me veio foi da noite que passei em claro, velando seu sono. os cabelos debruçaram sobre a face branda e por vezes sorria. ainda me afeta o fato de olhar você dormindo e me pergunto como pode um menino repousar dentro de um corpo de homem. a respiração era forte, constante e o ar estava cheio de esporos de Manoel de Barros. sou suspeita, mesmo me deletando nesse olhar lascivo, já me apaixonei por poetas do século passado, engravidei de línguas mortas e palavras que já não são ditas. a gestação não termina nunca e vivo parindo poesia etérea e enganos.

sufrágio

ei, me dê sua mão, ascenda um último cigarro pra mim, quero ter o gosto de sua boca mais uma vez no filtro e assim jamais me sentirei só, mesmo estando distante e de olhos tão vidrados. as coisas estão mesmo dando errado e parece que o refrão das músicas é sempre um clichê, que todo amante é michê, mas posso dizer que as saias de tule, os batons e os sapatos vermelhos, assim como os beijos no espelho foram abandonados. é que os votos se foram bem antes de agora, bem antes de juntar suas coisas e ir embora.

nocaute

não olhe para trás quando estiver estendido, frágil e sangrando depois de receber mais um golpe baixo de seu adversário e perder outro round. não pense que poderia ter mudado tudo se tivesse agido diferente, se tivesse outra estratégia. não, Godot, não seria diferente. o chão é o limite onde não existe fundo do poço e dramas surreais. tudo é luta contínua, numas se ganha, noutras se perde, defendendo exatamente a mesma coisa que seu opositor defende e ambos mal sabem o que é. dito isso, não pense em honra ou em vingança. erga-se e respire fundo, levante a guarda, pois seja jab ou cruzado, gancho ou direto, o soco é o padrão mais concreto que conheço.

fugidiço

é esse olhar que trago agora, esse que quer ir à forra, mas que se devota ao asfalto e o vê de modo tão diferente que nem lhe atinge mais o negrume e a resiliência. e se me escondo sob a sombra da obediência ou sob a raia da rendição, dissimulo. não tome como ganha a batalha do porvir, a cor dos sapatos ou a falta deles confundem o passo do ser oprimido. e assim calado, tomado de fúria e dúvidas indigentes retoma forças e recorre ao visceral, que é de luta a realidade vigente.

agonia

nem o folk poderia fazer por mim o que a poesia não faz. queria voltar à inocência de tenra idade. sinto tanto e com tamanha insistência esse desejo de esquecer, que quanto mais penso, mais essa mágoa se instala em meu ser. o sentimento parece tão endurecido e cheguei a achar que era dormência. quando tantos ruídos se misturam supõe-se silêncio. quem dera eu lembrasse o que é ter paz, que cantar o desespero já não alivia mais a dor.

nova


é o ciclo da lua que seus olhos seguem e nessa semana não tem luar. permaneço só, como jamais deveria ter deixado de ser. é que me faz falta, as noites perduram insistentes e as madrugadas se tornam cada vez mais frias. não sei o que me comove mais, se são as lembranças de suas falas escassas e arredias ou se é a saudade sua voz grave que ainda teima em chamar meu nome.

sinfonia

esse silêncio me deixa aflita e perdida, soa-me privação, tortura, uma certa dose de falta de bem querer. não importa o quanto me castigue, nem o quanto se cale, estarei aqui esperando quando sair disso. por agora minha serenidade ainda não me abandonou e enquanto ela estiver comigo, recordar-me-ei apenas de suas palavras amenas e suas composições mais amorosas.

muros


tenho coroado o mundo, e todas as pessoas de meu círculo, com a mesma solidão que me impõe. e ao invés de me curar disso, me jogo cada vez mais nessas trincheiras e me escondo em bunkers impenetráveis que construí. já não sei se é uma tentativa tresloucada de me proteger, ou se é a maneira que encontrei pra acabar comigo de vez. seu argumento é que não me impõe nada e que precisa de seu silêncio assim como eu preciso de sua presença. não sei o que faço comigo, não sei de mais nada. sinto que cheguei na última boneca matrioska.

toque

quebrei o silêncio com mais uma ligação, uma entre uma dezena nesse último mês, em vão. não quer me atender, eu quis falar com você, talvez mais que em outros tempos, quando as coisas eram amenas e sorríamos à toa. vi a expressão mais vazia em mim ao me olhar no espelho. talvez vazia não seja a palavra, sinto-me um artefato bélico, uma granada pronta para explodir. meus amigos mais próximos perceberam que eu mudei e para pior, dizem. já fui algoz e me preocupava menos com meus sentimentos. agora sangro e me preocupo.

engasgo

ontem fui visitar um amigo, doença terminal, talvez cansado de viver e consciente. ele ainda conseguia sorrir, mesmo sabendo que era grave e terminal, conseguia fazer piada de sua situação e parecia querer confortar os que o amavam e estavam à sua volta. Godot, estou aos prantos, hoje pela manhã ele faleceu, e eu, meu caro, não sei o que dizer, não sei o que dizer... minha retórica é dos tempos pessimistas, em que ainda havia algo para dizer, mas agora já não tenho, não mesmo.

pernóstica

é o adjetivo que gosta de usar para me definir, ou para me irritar, por vezes. admito que sou e que ele cabe bem em mim, não sou medrosa com tudo. o medo que alimento é do sentimento que tenho por você. minhas palavras posso usar com orgulho e altivez, elas me levam exatamente onde quero ir e onde quero que as pessoas estejam. não chamaria isso de pedantismo, embora soe um tanto presumido. sim, assumo o peso de minhas faltas, assim como dos excessos. ainda não encontrei o equilíbrio perfeito, nem sei se é o que procuro, mas direi que sigo tentando.

mouro

ele está perdido em areia movediça, o cavalo que monta é inteiro e arisco e foi batizado pelo tempo. prefere a liberdade à gaiola em que habito, ri de minha loucura, desdenha de mim e diz que tudo é besteira. talvez tenha razão e ainda assim, mesmo se voltando para o deserto silencioso, sigo amando meu mouro, quem dera meu. só queria me livrar de tudo isso. quem sabe, em silêncio, ele cavalgue nas areias de minha ampulheta.

reminiscências

lembro-me da praia, da primeira vez que pisei na areia, da onda que pousou sobre meus pés, há muita gente que resolve entrar em sua fantasia, mas não todos. resolvi abandonar-me como aquela onda , a maré, as inconstâncias gravitacionais, à mercê da lua e do vento. sim, poderia dizer a você que estou inundada daquele azul imenso do começo de tudo que está em mim, ou ceder aos sons que me invadem, dizendo que somos resultado de nossa infância, mas não tenho saudade da minha, e por vezes me vejo em lugares que nunca fui e me acompanham pessoas que nunca vi, mas que me sorriem como se fosse amada, me vejo bem mais velha do que sou realmente, tenho visões distorcidas do que me rodeia. acho que você não existe, e que quando quer brinca comigo, como um cão que encontra uma boneca velha sem uso, como podemos perder tanto assim?

há tempos esqueci de dar valor ao que era certo para todo mundo e voltei-me ao que era correto para mim, mesmo não sendo tão reto e nem tão meu assim. não sou especial por me afastar dos outros, nem tão pouco por não me adaptar à meiguice que me pedem. e porque seria especial se nasci como a maioria, se cresci e vendo o desnecessário e se a poeira de meu fim será breve como a de todos?

nula

endureci muito depois de ontem, há coisas que não passam em branco, por mais que eu tente a realidade é essa que vivo, sem floreios, sem interjeições pacificadoras ou falas heróicas. é o que é, sou o que sou e expectativas, mesmo que mínimas, são nocivas a qualquer relação, verdadeira ou não. sucumbi ao tempo que me dediquei aos seus pés e ao seu som, mas não estou mais disposta e virei as costas, como virei a tudo que já amei um dia. vínculos? esses você não tem nem quer e eu tenho muitos que também não quero. e a linha é bem essa: seguimos tendo o que não queremos e desprezando o que temos, até perdermos mais alguma coisa, mesmo que a afirmativa seja não ter mais nada.

cacos

não gosto de vasos de vidro, nem de garrafas inteiras, são como um chamado ao caos, um pedido de quebra e quanto mais me deparo com rupturas irremediáveis mais amo os cacos, as catarses, mosaicos que se colam perfeitamente com a realidade torpe que se apresenta. nada é tão belo quanto observar as pessoas por ângulos diferentes, notar que as inteiras têm tão pouco a oferecer e as despedaçadas são universos passionais divididos entre a dor, a esperança e a fúria.

cômoda

deveria ater-me apenas ao presente e imperá-lo como os grandes mestres da calma e passividade, mas não sou religiosa. aprendi a recitar seu nome quando não está comigo e esse mantra me acalenta por um tempo. queria ter a sabedoria dos gatos, construir meu espaço seguro e pacientemente esperar o carinho daqueles que me são gratos apenas pelo que sou. quem sabe sorrir enquanto durmo manso, com as patas para o ar, sobre a cômoda do quarto, mesmo sabendo das bardanas e das lagartas que as devoram. mesmo sabendo que a mão do dono que afaga é a mesma que doutrina.

alvorada

ao olhar-me no espelho de manhã, escovando meus dentes, me encaro e admito que olhar fundo em mim é difícil, muito difícil. vejo os olhos de meu pai, o queixo de minha mãe e muita coisa além disso. não há paixões, não há melancolia, ou qualquer sentimento que não seja angústia. desde cedo, assumi minha figura de maneira rígida, sem manifestar interesse profundo e até bem pouco tempo atrás não me conhecia direito. agora, tenho tido a coragem de me perguntar coisas que jamais ousei tocar.

monalisas

nunca achei que era como os outros, Godot. há algo em você que me irrita profundamente, assim como há uma força de empuxo que me arrasta para seus olhos, sem que eu possa me defender disso. alguns homens têm o péssimo hábito de comparar as mulheres entre si, como se ser mulher fosse algo comum e raso. todos podem ter cópias de Monalisa, podem ser comparadas à Monalisas, serem falsas Monalisas, reza a lenda que a verdadeira está exposta no Louvre, mas acredito que ela está perdida eternamente nos olhos de Leonardo.

saldo

posso ser frágil, mas tenho orgulho que está ferido, como esteve tantas vezes enquanto me deixei afligir por esse sentimento. mas não vou me fazer de vítima, ou me vangloriar que superei você, pois em qualquer uma dessas premissas estaria faltando com a verdade. mais que nunca quero ser forte, mais que tudo quero superar esse momento. não precisa se fingir de ausente ou se esconder por trás desse silêncio. sigo agora meu caminho.

polos opostos

parecia evidenciado que somos opostos, mas vejo isso com mais clareza, não somos de jogos e isso deve ter nos afastado. eu procurando a liberdade e a falta de compromisso e você se apegando à velha aliança de Midas que já fracassara há algum tempo. as aparências enganam, na verdade eu sempre honrei os compromissos que assumi até hoje e, por dignidade ou senso, os mantenho livres de minhas inconstâncias, enquanto você não assume vínculos e não admite a possibilidade de que as pessoas ainda possam confessar os sentimentos mais puros, sem estar procurando fugas temporárias da realidade. a única certeza que tenho é que estamos com medo e o medo acaba com quase tudo que não seja ele mesmo.

trapo

nunca gostei desses joguinhos de amor, nem dessas armadilhas de paixão, avisei que eu não era boa, avisei que não fui feita para agradar ninguém. ultimamente tenho me rasgado demais, pois tem me colocado mais à prova do que estou acostumada, aliás minha credibilidade só é nula para seus exigentes padrões. ser um embuste sempre custou-me menos que ser verdadeira, apesar disso nunca me privei de me mostrar inteira e nua a quem amo, mas toda lição é válida. e se essa valeu, foi para provar minha teoria de que ninguém ama incondicionalmente, nem mesmo eu.

domingo, outubro 09, 2011

Fragmentos do Ciclo dos Símios


quase Hemingway


isso foi só no começo, enquanto escrevia os oito capítulos iniciais. eram sensações ruins, não sabia bem se era ficção ou romance. alucinada, vomitava um monte de palavrões. dizia: "Carlos, continue batendo!". e ele respondia: "comprei botas novas!". depois de boas surras eu fumava um pouco, esmurrava a porta do mobilhado e caía no sono. aquelas coisas continuavam brotando da minha boca, a violência era atraente para nossos corações atormentados. ele era parecido com Hemingway, quem sabe um pouco melhor. abri a gaveta do meio e puxei o porrete, guardado embaixo das calcinhas e bati nele com toda força, “enfia no rabo, com querosene e coloque fogo, honey!”



expiação

amarrou pernas e braços, reforçando a condição eterna de subjugada. a boca deixou solta, pois já não importava mais o que ela dissesse, eram só palavras de um serzinho magoado e isso o divertia. reclusa não chorou em nenhum momento ou implorou pela liberdade, não daria a ele essa satisfação. vieram os outros e por falta jogaram pedras, é fácil ser pedra.

a ilha

havia uma certa zona de conforto enquanto se esqueciam a friagem que trazia o corpo. naquela noite, depois de tudo que passaram, ambos sucumbiram ao silêncio e se tornaram ilhas de um mesmo arquipélago. a letargia era um sentimento novo e hora ou outra aprenderiam lidar com ele.

febre

a exatidão das coisas tirava-lhe o sono, e mesmo sem que percebesse estava presa num labirinto lógico, que negava, para no fim cair nas mesmas saídas óbvias de sempre. reverenciava os Best Sellers, os romances baratos em grandes volumes, vendidos em bancas de revistas, mas não conseguia aquilo que julgava maior e digno, escrever algo para ser lido com facilidade. queria o fervor das putas, ser vendida em todas as esquinas e em qualquer canto que a desejassem, mas era covarde demais para isso, então escrevia.


porta-retrato

sim, aquela era a melhor lembrança que trazia dele, um sorriso exposto sobre a estante empoeirada da sala. era um troféu do fracasso de sua mãe de mantê-la protegida de seus amantes, depois que o pai foi embora. nada flutuava quando os três dividiram por meses aquele maldito quarto e sala. o sorriso era denso, quase sem falhas, não fosse aquela pequena ruga dissimulada que erguia-se no canto esquerdo da boca. tentou fugir, mas ele descobriu o novo endereço e não deveria ter voltado a importuná-la. foi aquele rosto que a esfaqueara, aquele mesmo corpo que ela fez questão de alvejar por duas vezes, sem nenhuma piedade.


digressões

era mais que trabalho, a máquina de escrever, o barulho, o ritmo frenético das teclas, o cigarro aceso entre os dedos ocupados iam se tornando prisões para os dois. entre letras e paródias trágicas ela construía seus personagens, sua vida e se sabotava nas entrelinhas. ele era um xucro, mas conseguia rastreá-la nas pequenas atitudes. ambos eram arrogantes obstinados, atentos e criavam distâncias que brotavam entre rotinas solenes.

asas

por um momento olhou em volta, esquecendo-se do passado e nem confabulando um possível futuro. vislumbrou a luz que invadia a fresta entre as cortinas cansadas. as partículas de poeira pairavam sem culpa e caiam sobre o rosto de Carlos. ela sorria pela simplicidade da cena, ele jurava que o olhar dela era por amor, eu sei que é só a fumaça de cigarro, sol e poeira.

simetria

todos eles se comportam assim em algum momento, fogem dos sentimentos, como Hemingway fugiu. de certo modo preferiu enfrentar a guerra. encarar outros homens armados parecia mais justo e menos complicado que olhar nos olhos de uma mulher. aquela retina tinha o mesmo peso de mil trincheiras. quantos já foram colocados contar a parede e fuzilados sumariamente por olhos mais gentis que os dela.




móbile

os olhos brilhavam, ele bailava num ritmo próprio quase alucinado revirava-se. ou seria apenas o vento, um frescor sob sua armação? erguia o queixo para o alto como se orasse, mas só conseguia aquela expressão quando me ouvia gemer depois de ser currada, a minha dor soava redenção. no nono capítulo, ela revelava toda honra e toda glória ao deus príapo. Carlos esquecia-se de suas dores e tornara-se Dom Quixote queimara todos os moinhos de vento, galopava e gozava sobre sua Dulcineia.


cochilo


agora ele dormia o sono dos justos e ela o observava com a atenção redobrada. bem que poderia escrever sobre ele, como duvidava de sua retidão e como ele duvidava de sua sanidade. poderia contar da suavidade que sustentava naquele corpo magro e infame, o quão obscenas eram as palavras que ele proferia ao pé de seu ouvido. não era um homem excepcional e nem se considerava como tal, não era sofisticado e estava bem adaptado ao meio que vivia. mas se fosse definir seus predicados deveria esconder os escritos dele. Carlos não era uma pessoa fácil e não aceitaria o estereótipo de qualquer personagem.



mar

os olhos permaneciam inertes, pousados na imagem dele enquanto dormia, mas despertou ao perceber que era observado. repousou a mão direita sobre seu rosto, enquanto as lágrimas dela pingavam sobre ele. as mulheres são sentimentais e preferia se calar quando não entendia suas reações. ela não percebia que externava apenas uma ilusão. ambos sabiam que cultivavam um determinado prazer , o de se machucar mutuamente de propósito. aquela satisfação indescritível que sentiam ao desferir golpes certeiros um conta o outro era o que os conservava juntos.

post-it

a insônia fazia ver coisas que nem sempre estavam ali, só agora percebera que as anotações estavam úmidas e que havia mofo na parede. escrevera a noite inteira ouvindo os choramingos de Carlos no meio de seus sonhos, ou pesadelos, não sabia ao certo. as chuvas estavam marcadas na pintura velha daquele apartamento suburbano. as unhas dele estavam roxas e as dela roídas, quase que em carne viva.

a mancha

meu sangue ainda estava no lençol, não sentia mais dores, mas os hematomas permaneceriam ali por mais dois ou três dias, antes de sumirem completamente. a alma não cicatriza como a carne, não mesmo. passava das duas da madrugada, os olhos procuravam uma figura horrenda e só encontravam Carlos e a máquina de escrever silenciosa. talvez aquela fosse a verdadeira visão do inferno.


caos

todo fardo é pesado demais e era o preço para vê-la sorrir. o dia passou lento e Carlos estava exausto. por horas seguidas carregou sacas de milho para o depósito. não suprimiu sonhos, talvez tenha sucumbido a eles. nesses dias de realidade gritante e absurda expunha-se ao risco. imperava o desejo do doentio sentia-se sem ar e com saudade de sua hipocondria.

escafandro

nesses dias que o silêncio toma a máquina de escrever e contamina a alma, todo resto se cala. estava preenchida de azul, com os pés enterrados na areia turva e cheia de sedimentos. o mundo exterior é um umbigo fino repleto de ar e tudo se move de maneira lenta. Carlos chegou bêbado em casa, sem nenhum dinheiro e parecia ter levado mais uma surra, essa bem pior que as outras. e ela não sentia pena, nem raiva, não parecia pertencer aquele quadro.


livros

não recebi nada nos dois últimos meses, por não entregar duzentas páginas como o combinado, estava atrasada. no décimo capítulo, não dariam o emprego a Carlos com a cara estourada, ela trabalhava muito, ganhava pouco e estavam na lona. beberam a garrafa de vodca em grandes goles. ela vomitou a manhã toda, quando melhorou escolheu seus melhores títulos e vendeu para um sebo. garantiu jantar e bebida naquela noite.

a fome

a geladeira estava vazia mais uma vez, logo desligariam sua luz e já pensava nos banhos frios que teria que tomar. o estômago reclamava e o consolo era que nos dias bons compara muitos maços de cigarro. fechava os olhos, a exaustão tomava conta da cena, hoje Carlos não voltaria para casa. desistira centenas de vezes daquele capítulo, reescrevia, relia, rasgava papéis e por mais que tentasse não alcançava o sentido que lhe impunha a realidade. não conseguia se desfazer dele, por isso não desistiria.


redoma de vidro

colecionava souvenires das mais belas cidades do mundo, admirava mais os globos cheios de água e brilho ou pequenos flocos de isopor que imitavam neve. estavam dispostos nas prateleiras mais altas para que não fossem tocados por estranhos. não que quisesse conhecer lugares diferentes ou ter sensações novas, mas apenas o deleite de estar presa dentro de uma esfera segura. no décimo segundo capítulo, os baobás não tomariam seu planeta, tão pequeno quanto o do príncipe. datilografou insana as cinco páginas e com os olhos cheios de água sufocou, aquela tarefa vencia suas forças. a casa já não era um ambiente controlado, ele não era a rosa, nem o único do universo, mas a constatação de que precisava dele era assustadora.


amor


serviu-me a flor como prato principal. ensinou-me arrancar pétala por pétala até chegar ao coração. esse sim, era iguaria fina desconhecida ao meu paladar que aprendi a degustar e salgar por suas mãos teatrais. no décimo terceiro capítulo, ela descobriu que a alcachofra não é flor e sim inflorescência, como o abacaxi. juntou os papéis de seu último pretenso livro e os jogou pela janela, rindo! um copo com uísque, não em grande dose mas o suficiente para fazê-la dormir.


dados

lançaram-se extremos sobre o veludo azul, fácil demais para ser real. “seis, dois”, gritava o crupiê. suspiro do que não veio. no décimo quarto capítulo, perceberam que os dados são viciados derrota. um era seis e o outro nunca caía com um, ambos infiéis provocadores. se juntos somassem sete ou onze não estariam entregues aos jogos de sedução nem ao dilema da perda.

cortinas

pensava que ser livre era bom, se perder nas escadas rolantes, estacionamentos rotativos e vagões do metrô. se entregar a estranhos era divertido e perigoso. espiava por trás das portas e não se assustava com mais nada. no décimo quinto capítulo as igrejas estavam lotadas e ela já não queria perdão, enrolaram o corpo nas cortinas e os dois desceram com ele pela saída de emergência.


a cruz

a ignorância imperava ali. comprara um martelo e se encheu de alegria. nunca fora tomado por um sentimento tão crucificante e redentor. hoje todas aquelas redomas de vidro seriam quebradas. no décimo sexto capítulo, os olhos de Carlos estavam vazios e só pensava no dolo de quebrar a resistência dela.


preâmbulo

o cansaço dominava o cenário, cochilou com o cigarro entre os dedos. o vazamento da pia dava o compasso da cena. a boca aberta, podia ouvir seu coração e a quietude sob a coberta alaranjada. a sensação de sossego beirava a fúria, jamais confessaria o que fez. talvez a beleza das coisas resida nesses momentos suspensos. o tudo habita onde aparentemente nada acontece.


circo

se dissesse que não gostava do espetáculo ririam de mim. tenho antipatia por palhaços, pois se parecem comigo. minha desgraça é pano de fundo para a alegria alheia. a platéia esperava ansiosa pelo globo da morte, o barulho ensurdecedor para quem não quer ouvir mais nada. no décimo oitavo capítulo as labaredas giravam na mão daquele homem, segurava as adagas como se não cortassem. o público vibrava e a roda girava num ritmo frenético. ela era o alvo do atirador de facas.


winchester

Carlos teve mais sorte, tinha amor por ele e sei que seu desvio era por conta da personalidade opressiva de sua mãe. entrou pela saída de incêndio, todo molhado, numa noite chuvosa e foi ficando. já no décimo nono capítulo ela dizia: “o último cara que me bateu acabou dentro do rio, matei com dois tiros depois de ter batido nele, empalado seu lindo rabinho com o cano de winchester. quis mesmo esfaqueá-lo no coração, mas não gosto de mortes sangrentas e nem tenho um canivete. era uma bicha enrustida, chegou confessando paixão por mim, mas não conseguia ter ereções e me espancou por conta disso. não perdoo esse tipo de comportamento imbecil, não perdoo!”.



o boi

a quase guerra duma camisa no varal com o vento. uma cerca de arame farpado protege o quintal. o mito passeia pelo paladar, é carne! nada bucólico, cru, não causa náuseas e mata a fome. no vigésimo capítulo, sob a sombra da pedra preta, Guernica pasta. é bovina a carne que dobra no prato e meu olho desprende mil farpas na direção daquela camisa suada, entreaberta sobre o peito dele. consumo a erva da beira da estrada, a mesma que alimentou o boi. Carlos dorme, alheio à refeição e ao mito.


olho mágico

se olharam fixamente sem dizer uma só palavra. uniram-se para ver em alto relevo, o sangue na jaqueta de couro era só pretexto, o que queriam mesmo eram sensações em três dimensões. enquanto um sufocava, o outro respirava com dificuldade e o terceiro nem isso. mal se davam conta que precisariam se livrar do corpo, beberam até perder os sentidos e dormiram com o morto naquela noite.


pretextos


estavam cúmplices desde o princípio, sem ausências. mesmo em pequenos gestos conseguiam se entender. um era o limbo, não podia se perdoar pelo frequente equívoco de fazer promessas que não cumpriria. o outro era o oposto, não se prendia a nada. nesse capítulo descobririam que ambos são mendigos, andarilhos errantes. perderam o rumo, se contentavam com migalhas. não há um ser que se possa chamar de “casa”.


luzes

não havia confronto ali, só um misto de desesperança e culpa. sem querer ficar ou fugir fingia dormir por não querer falar nada. a rua esteve escura por muito tempo, mas haviam tomado providência e as luzes naquela noite foram acesas. cada um de um lado da cama, quase uma avenida entre eles e um silêncio aterrador. ele conseguia ver as pessoas passando. pareciam formigas em suas filas coordenadas. por mais que pensasse em uma saída digna, Carlos sabia que estavam condenados a um fim trágico.


a bailarina

lembrava de meu pai naqueles dias de chuva, foi num dia como aquele que foi e não voltou. ele nunca esteve muito tempo dentro de casa e recordava-me dele apenas pelos presentes que trazia e pelo cheiro de bebida e cigarro que exalava. trouxe-me uma vez uma caixinha de música, dessas que vem com uma bailarina. talvez por isso bebia e fumava tanto, para ter de volta o cheiro de infância. no vigésimo quarto capítulo, Carlos a tirava pra dançar e ela sentia-se como a bailarina da caixinha, rodando, bêbada, sobre um mar de espelhos.


calundu

a mãe falava com os mortos e cedia seu corpo a eles. Carlos lembrou de que quando criança ouvia conversas no escuro, sussurros por trás das portas e nunca soube dizer se era a religião ou o estilo de vida dela. ao amanhecer o banhava com unguentos e canções de maldição, um culto secreto de glória ou de lamentação, como saber? recordava que fora tomado por tios e por desconhecidos e não se lembra se vivos ou não. o certo é que era violentado por herança materna. no vigésimo quinto capítulo, ele escondia o rosto para chorar e sufocava os soluços no travesseiro. a fita da máquina de escrever estava gasta, mas mesmo assim queria continuar escrevendo, ela não era sensível e nem tinha tato para assuntos tão pessoais.


o disco dos símios

o vinil está sujo, a agulha vai e volta no mesmo ponto, mas ninguém desliga a vitrola. uma varejeira sobrevoa as sobras do nosso jantar, talvez o último. uma mosca consegue nos desprender da uniformidade da cena. é verde e voa rápido demais. não temos mais o que falar, só ficou a indiferença e o desprezo. Carlos num único e certeiro golpe a derruba e tudo volta ao normal. no vigésimo sexto capítulo, o relógio parou e está estático como o retrato dos três macacos. o cego insiste em ouvir, o surdo insiste em falar e o mudo cansou-se de tudo.


tramontina

trago marcas de faca no peito, no ombro esquerdo e nas pernas. foi a falta de amor de meu pai por minha mãe que causara tais cicatrizes. herdei dele o abandono precoce e dela os amantes. e é aí que a minha história se parece com a de Carlos, a diferença é que não acredito em espíritos. no vigésimo sétimo capítulo, eles arrastavam um corpo para o rio, quase não havia sangue, não fosse o orifício no peito do primeiro tiro, o único que sangrava. os amores rasgam feito as facas de cozinha, pouco afiadas para não cortar os dedos, mas pontiagudas e no tamanho ideal para furar fundo.


peixe morto

já te pedi algumas vezes para que não me olhasse assim, esse seu jeito quase me dói, sabe bem de meus defeitos, não ouso enganar ninguém. hoje posso ficar mais um pouco só pra te agradar, vir deitar mais cedo, encher seus ouvidos de sonhos e seu corpo de amor. no vigésimo oitavo capítulo, deixou o sol dormir um pouco mais e sustentou os medos dele entre seus seios, sem promessas posteriores. era mais fácil amar de verdade no passado que no presente. lá no passado, como lembrança trancafiada em algum canto escuro, o amor é garantido por ser pretérito. ontem deparou-se com vários olhos como os dele boiando na lagoa Rodrigo de Freitas.


baixio das bestas

datilografou três possíveis desfechos para a cena, no vigésimo nono capítulo, o personagem permanecia caído no chão. a malhação do bode expiatório cabia bem à ocasião, as pessoas se acalmam ao extravasarem suas insatisfações, mas por hora não descartaria os pregos e nem a arma de fogo. ela indagava-se diante da humanidade que crucifica seu salvador é melhor dar a outra face, abotoar nele o paletó de Judas ou deixar que ele resolva o problema sozinho?

liberdade

inspirei como se fosse só pulmões e expirei como se botasse até a alma para fora. a consciência berrava ao mesmo que me entregava em gozo silencioso. Carlos colocou o cano da winchester na boca e sentiu o gosto do chumbo. em algum momento ela o comparara a Hemingway, então se sentiu em cuba, quase revolucionário, num desespero que beirava crença. ao menos agora a consciência também se calaria.



dedo médio

seus dedos eram curtos, mas a cabeça podia voar. não entendia as filosofias, nem as palavras difíceis que ela datilografava o dia todo para colocar comida na mesa. não entendia o motivo das pessoas perderem tanto tempo lendo um livro sem nenhuma figura. a janela era mais interessante, os transeuntes eram diferentes e tão iguais que por vezes pareciam o mesmo passando repetidamente no mesmo lugar. o cano da winchester era longo demais e ainda assim seus braços compensariam a insuficiência dos dedos, ele já havia se decidido.


miolos

gastei alguns neurônios para entender Schopenhauer no seu aspecto existencial, mas ao concordar com ele em vários pontos abdiquei da esperança. apetecia-me o sabor das vísceras de animais, o fígado era o mais apreciado. no trigésimo segundo capítulo, encontra Carlos sentado no chão com os olhos fechados, cabeça pendida sobre o peito, mais uma vez o comparou com Hemingway, mas ele era melhor, conseguiu tocá-la como poucos. mas o cheiro de seus miolos não sai das narinas, não sai.


retroescavadeira

não há discernimento em autobiografias, era melhor falando dos outros. propaganda enganosa é o falar de si, pura e simples propaganda enganosa, pensava. Carlos morto explica-se melhor que ela. olhava para ele como quem observa um detento, sabia que não gostava de ternos, dizia que sempre o apertam em algum lugar, mesmo os feitos sob medida. desconhecia o terno e quando eclodia em sua alma perturbada, internava-se. sabia mais dele do que de si.


buraco negro

datilografei mais de cem páginas perseguindo um personagem que tentei manter à distância. tarde demais, já era um objeto em órbita de colisão sem escape, atraída de volta à região de onde fora gerada. poderia me perder no céu de sua boca, feito o sentido das palavras voltadas à verborragia incrédula de quem não crê em semiótica. no trigésimo quarto descobre que nem as estrelas vivem para sempre e que perdera por completo o controle da situação, encontrava-se em colapso caindo sobre si mesma.

metafísica

sua voz grave insistia em chamá-la, enquanto sentia seu membro rijo entre os dedos, desejava que eles passeassem debaixo do vestido, afastaria a renda delicada da calcinha para sentir o quanto ela estava molhada, apenas vislumbrar a cena o conduziria ao gozo. Carlos não estava ali e ainda habitava seus poros, lembranças e entranhas. os pensamentos dela eram iguais aos dele, então abriu as pernas e com dois dedos penetrou-se com força, várias e continuadas vezes. a lembrança dele chamando pelo seu nome não seria o bastante, não hoje.


símios

enfim conseguiu chegar ao fim, eram os últimos capítulos. há quem não tenha noção desses ciclos que permeiam a existência. um assassino deveria saber que matar uma pessoa é difícil, imensamente difícil, até porque o golpe proferido é o mesmo e de igual proporção ao que lhe atinge, fere e castra, no mesmo momento que mata. e essa dor vai e volta, no mesmo lugar, como vinil sujo. ela podia dizer que se defendeu, que fora vítima dele incontáveis vezes, mas ser vítima é melhor que ser igual ao agressor, ou não? já não sabia dizer se era culpa ou redenção. a lembrança do morto era a coisa mais nítida que tinha em si. mas depois que uma pessoa morre em seu coração, não tem mais volta, não tem.

infâmia

a lembrança do corpo afundando no rio ia e vinha, como o próprio movimento do defunto. era branco, jovem demais e passou dos limites, antes que o matassem. ela quase ria, era mesmo uma vingança crua. o olhar de Carlos era único, não era remorso, não era rancor, de certa forma ele submergira com o morto. parecia guardar o universo na retina funda e negra, feito a água naquela noite de lua minguante.


ampulheta

via as vidraças sujas, mas não queria limpá-las. não era preguiça, tinha mais a pensar, tantas páginas para escrever, tanto o que expressar. as teclas sonoras entoavam uma canção antiga, enquanto a luz tentava passar pelo vidro. voltar o tempo é impossível, mas é o que mais desejamos. não seria mais coerente tentar pensar e aproveitar melhor o presente, para que no futuro essa sensação de querer voltar o tempo não seja tão latente?




aprendiz

fosse um misto de insegurança e certeza, nem isso. aquilo era torpor cego, loucura. personagem comandava certeiro e brotava em cada linha mal feita, em cada palavrão dito enquanto ele dormia. determinada a fechar aquele ciclo digitava calada e faminta pelo verbo. no trigésimo nono capítulo, não era Carlos que pulava a janela e sim a realidade nua, violenta e sem alegorias, aprendia com ela.



plenitude


antes de cicatrizarem as feridas criavam cascas, havia um prazer mórbido em cutucá-las até sangrarem. suas mãos suavam enquanto pensava noutro capítulo. e como se esperasse o penetrar sagaz de mais uma daquelas vontades compulsivas de escrever qualquer asneira, respirava fundo. a estação mudava e o cheiro da tempestade entrava pela mesma janela que ele entrou.

domingo, novembro 28, 2010

a plenos pulmões

(para Maiakovski)

entre os livros da prateleira
encontrei meu passado
e consagrações para o além
descobri-me uma tagarela

recordei das falas repressoras de minha mãe
e das palavras de incentivo de meu pai
mal sei dizer se algum estava certo
mas sei dizer das lixeiras

como elas nasci com uma queda
um leve pendor para a sarjeta
becos escuros e fétidos
meias furadas e para a decadência

lembro-me ainda das cuecas samba-canção
penduradas no varal de minha avó
e do primeiro sexo anal
sem sabão

e nem me olhe com essa cara de repressão
gosto de agredir olhos
já que os ouvidos são acostumados
com palavras de baixo calão

e tenha certeza que o jornal é pior
bem pior que minhas palavrinhas imundas
putas e infiéis são rasgadas de orelha a orelha
todos os dias, mas parece que não são humanas

ninguém se importa com os cães sarnentos
ou com as goteiras do domo central
quem há de olhar a propriedade alheia
e se agarrar à ordenha de gravatas?

pintem os cabelos e os olhos de preto
pois os vestidos são frágeis e podem puir
amarrem os tornozelos para que os escravos
permaneçam à vista e cativos

é preciso calar o jovem que se rebela
vejam quão fundo é sua crença
saibam quão lúcida sua vidraça
se nada der certo cortem sua goela

não peço que bajulem os críticos
ou que cortem suas unhas antes
da ceia de Natal
mas peço que calem sua boca

e iremos felizes suportar o luto
do escritor vagabundo que ousou
e vistam-no de branco para ressaltar
o que não foi dito

ontem fui até o velho casarão
o mesmo onde passei minha infância
e nada lá era como antes
nada lá era mais meu.

domingo, maio 30, 2010

Carta a Kerouac

I

Repare, meu caro Kerouac, saiba que aqui a vida anda desoladora e como você sobrevivi aos consórcios por anos, e eles assim me proporcionaram vinhos baratos e leitura cara! Os cigarros vingavam-se de meus pulmões e o ar nunca me faltou, embora a comida de bandejão tenha me feito regurgitar pensamentos sartreanos! Cá ainda ouço nossa canção, aquela de Bob Dylan que inspirou tantas involuções! Tenho saudade apenas do tempo que nos sobrava e de seus olhos de paisagem quando eu falava de sentimentos pouco nobres!
Aquilo sim era um Royal Straight, baby!
E depois de esgotar as vontades vãs tento não me apegar às futilidades de uma vida vazia, mesmo sabendo que as pequenas epifanias nascem desses abusos frívolos e descartáveis.
O amor para mim tem cheiro de látex e gozo puído.
Mas odeio sentir-me dependente e percebo que quero é espatifar qualquer vínculo, qualquer vício, mas acabo me entregando a eles com mais violência do que quando me apeteciam as dependências.
As garrafas secas lanço contra o concreto armado, as bitucas de cigarro pisoteio para se apagarem, mas compro tudo que desdenho mais de uma vez.
Até quando vou poder pagar pra ver?

II

Suas alegorias insanas me trazem lembranças do tempo em que as esquinas me eram menos sombrias e fétidas. De quando os olhos alheios não me causavam asco e não me chicoteavam danos.

As humanidades nunca me proporcionaram pão e vinho e se não fosse minha capacidade de abstrair talvez não tivesse sobrevivido.

Mesmo assim, Kerouac, doei-me a seus devaneios por altruísmo, de maneira simples e cívica me coloquei em seus braços magros e jovens como quem se entrega com gosto ao seu carrasco.

Nos becos o caos, a selvageria, a desordem e o atentado ao próximo sempre me acompanharam de perto, mas era jovem e inconsequente, nada me atingia em cheio!

Nós nunca almejamos arco-íris ou chuva de meteoros!

Enquanto você me esperava em casa com a perna quebrada, por tantas rasteiras da vida, eu me vendia por bebida e diversão. Por horas, dias e anos estranhos meteram a mão por baixo de minhas saias arrancando-me ralos pudores, deixando esmolas e levando gozos recolhidos.

Não estou reclamando, aprendi contigo a não me arrepender de nada! E o vil metal que troquei por mim comprou-me ovos fritos, conhaque e companhia sua.

III

É certo que dinheiro não compra tudo, mas nos dá a dimensão quase completa do possuir, o que creio seja o mais próximo dessa tal felicidade utópica.

Você nunca foi óbvio e por vezes se zangava com minhas serenidades, mas o que posso fazer?

Por mais que queira não ser mulher, por mais que negue essa condição imposta e desonre essa tal feminilidade, ainda sou mulher e tenho sentimentalidades.

A tala na perna e o andar desajeitado te deixaram mais frágil e as impossibilidades te fizeram um pouco mais meu e isso te desagradava.

Não pense que desconheço tal sentimento, você sempre me aprisionou em sua boca, baby!

Foi bom ter seu corpo entregue aos meus cuidados, naqueles dias.

Banhar e alimentar o homem que venerei apaziguava as dores de faltas e ausências.

Do que não senti por não parir, creio que tive ao acolher-te.

Não digo isso com amor, o sentimento de posse é mais forte que qualquer outro, fui dona de alguém, mesmo que por pouco tempo.

Temos nossas brevidades pérfidas e admito que gostei de ter-te, naquela época em que não tinha quase nada além de mim.

IV

Conheço bem sua filosofia do tudo ao mesmo tempo, agora. E sei que se irritava em ter apenas duas mãos para abraçar esse mundo gigante.

Nunca dormia antes de você e quero que saiba que ouvi todas as suas orações para Dean Moriarty, nosso deus-pai.

Sabe, eu já quis tudo ao mesmo tempo e não aguentei o tranco, nem Dean aguentou e acabou como pastorador de carros numa garagem qualquer em Nova York.

Já estive no chão, na lona, sei bem a sensação de um direto cruzado, o sabor do sangue na boca e o gosto que a derrota tem. E às vezes arroto com o gosto dela na boca!

Mas a derrota não me traz desmerecimento, ela é minha única e verdadeira glória, baby!

Ainda amo você por me fazer lembrar do que vivi quando tinha a sua idade e para quem não acredita em deuses isso é bento!

Sobraram-me apenas alienações e as recordações das viagens alucinadas que fizemos.

Não tenho mais com quem compartilhar minhas sandices e a vida desregrada que levo, estou entregue ao álcool, às drogas e aos viscos sexuais.

Outrora pensei em regressar ao nosso canto e olhar-te mais uma vez nos olhos, como quem anseia se encontrar fora de si, mas já desisti.

Não somos os mesmos!

V

Embora todos os homens me tratassem bem e me fizessem feliz por algum tempo, as mulheres constantemente lançavam-me olhares de fúria e desdém, não que eu procurasse a aprovação delas, mas sempre fui rechaçada como um demônio entre as santas imaculadas no Paraíso.

No fundo sinto que queriam ser como eu, mas moças bem criadas não suportariam as cargas que já carreguei e não se sujariam como já me sujei. Mas elas aguentam calcinhas, nunca gostei delas, marcavam minhas roupas e o que é pior, dilaceravam minha carne. Melhor mesmo era não usá-las e quando alguma senhora polida me olhasse com descaso abaixava-me perto de seu cônjuge para constrangê-los em público.

Tenho porte, mas não tenho classe, baby!

A decadência foi a menina de meus olhos, mesmo que eu quisesse progredir sempre acabava me lançando na sarjeta, de onde jamais deveria ter saído. Por mais que gastasse tudo o que tinha em sapatos caros, cheirava à bebida barata.

VI

Os sapatos vermelhos e as meias arrastão foram meu uniforme por anos, nas ruas aprendi a não esperar nada do outro que não fosse um direto cruzado.

Em meu caminho sempre houve quem quisesse só me derrubar.

Lembra de nosso último Natal juntos? Recordo que me deu sapatos vermelhos envernizados, daqueles caros que eu gostava e te dei luvas de boxe.

Os bebês deveriam ganhar, ao invés de chupetas e doces, luvas de boxe e aquele boneco “João-bobo” para aprenderem golpear desde cedo.

Tenho braços finos, olhos dormidos, uma boca enorme, minha sorte são os pulsos firmes e a respiração constante. Mas o que derruba é o álcool, esse sim diminui as dores e os dias de vida, aliás, elegi a bebida como mãe-protetora, ela apóia, dá colo, esquenta o peito e atenua a visão dolosa do mundo.

Ainda calço aqueles sapatos, como que se batê-los e repetir em voz alta que: “não há lugar melhor que minha casa”, eu voltasse a sentir a garoa das noites menos infelizes que esta.

VII

Nunca me iludi com saudosismos baratos, mas sinto saudades do tempo em que estivemos juntos, tinha companhia e assunto depois do sexo. Com quem mais discutiria Maiakovski depois de trepar? Sexo bom, diga-se de passagem.

Perdi a conta de quantas vezes preparei o revolver e quis reduzir minha vida de forma simplista, como Maiakovski fez, quem dera tivesse tido coragem!

Optei pelos sacolejos das viagens, as caronas com estranhos, o sexo alucinado. Escolhi dissolver fronteiras e perverter o cais, ir além do que esperavam de mim. Preferi magoar.

Gostava do cheiro de sua jaqueta surrada que me aqueceu durante algumas noites, embora preferisse seu corpo. Mas nem sempre pôde estar comigo, o mar chamava você de tempos em tempos e eu ia ao porto ganhar a vida, na espera de seu aroma em mim.

Assim nos deixávamos vaga e dolorosamente.

Trazia-me galhos de presente, um a cada chegada, alguns floridos outros estéreis, mas eles vinham com um toque de dúvida.

Havia mais de uma razão para viver naqueles tempos, embora aquela arma dentro da bíblia hora ou outra me desafiasse a brincar de roleta russa e ela me deixou perder todas as vezes!

Apressados e atrasados nos tocávamos e nos deixávamos sós.

Hoje encontrei um galho seu entre “O proletário voador” e “A plenos pulmões”, sangrei.

VIII

Que hora é melhor que agora, esta hora que falo, mordo e sangro?

Talvez um dia eu sinta saudade do hoje, dessa carta e do derramamento espontâneo que me deixa mais frágil que nunca.

Da mesma forma que vivemos, o inferno não pode esperar, é tudo agora ao mesmo tempo, já!

As palavras desse escrito, carregadas de ternura podem enganá-lo, baby!

Mas não redigi uma linha dada aos destemperos balzaquianos e fechei os olhos para as rugas que me atravessavam o rosto, meu êxtase e castigo foram e serão as premissas da luxúria.

Recordo-me do dia que nos conhecemos, quando me encontrou numa sarjeta qualquer, depois de ter sido sugada e abandonada.

Levou-me para sua casa, tirou-me a roupa, lavou-me, como que em um batismo, onde se tira todo pecado do mundo.

Uma estrangeira entre seus lençóis e não me tocou a carne, não naquela noite!

Parecia-me engraçado não trepar comigo e se enfiar debaixo das cobertas e ficar olhando minha buceta, como se não fosse igual a todas as outras. Isso confundia e me envergonhava, tanto que fingia estar dormindo. Mas você se assegurava de que eu tivesse bem acordada, fazendo perguntas do tipo: “quantos homens já teve?”, “quem foi o primeiro?”, “ele te amou?”, “como ele te deixou?”...

Enlouqueceu-me com seu interrogatório ao ponto de eu pedir que me currasse ou quebrasse meu pescoço! Entendo que queria mais que sexo.

Talvez fizesse isso para me deixar constrangida, para me ferir, como saber?

Por isso me magoa tanto meu marido não perguntar como foi meu dia.

Os becos me eram mais gentis e menos aterradores que o cotidiano.

IX

Acordei hoje com seu gosto impregnado entre minhas coxas, baby!

Não que estivesse aqui para tocar meus devaneios ou dispersar angústias antigas num tempo tão ido, mas pela mão gelada de outro que me tocara fundo sem mesmo me conhecer.

Sempre deixei claro o meu desgosto por acordar cedo demais!

Não por suas mãos frias que se aconchegavam entre meus regalos mornos e carcomidos, não pelos olhos inchados pelo porre da noite anterior, nem tão pouco por minha falta de humor matinal.

Despertar era algo maior que isso, um não querer ver, um asco precoce da rotina de fingimentos e consternações.

Cedo ou tarde experimentamos uma das piores sensações humanas, a rara certeza de estar só e de não ser útil ou vital para algo maior.

O simples abrir dos olhos é mais assustador do que os becos mal cheirosos ou as navalhas presas ao pescoço ao ser currada.

Mas nada pior que ter dois olhos esquerdos e a deformidade de não me adaptar.

X

A única constância é esse desespero, baby!

Mesmo as lembranças que vez ou outra me levam ao Colégio Diocesano, onde o toc-toc apressado dos sapatos envernizados e o sussurrar pelos corredores soavam pecado, não me deixam esquecer que desde o começo o impulso era o de me jogar contra os muros.

Os uniformes finamente engomados, as gravatas azuis como as saias e meias ¾ brancas revestiam esse desespero. Nem conhecia ainda as ruas da cidade baixa, muito menos o porto, mas naqueles dias de calor e febre, eles já chamavam por mim.

Tudo que fiz é embebido desse sentimento que me arrasta para o chão, baby!

Alimento-me do erro que prolonga minha existência, embora sinta que esse manco ético aumente ainda mais o peso de ser livre.

Já estou ancorada aqui há alguns anos e as ondas do cais do porto vêm me assombrar nas noites quentes.

Nunca gostei das casas que morei, nem mesmo essa que resido agora, grande demais, cheia de luxo e tão fria. Mesmo o nosso apartamento, decorado com um colchão mofado, caixotes e mesa de tapume, parecia-me luxuoso demais.

Nasci para as sarjetas, portos e pontas de rua!

Por quantas vezes fui pega escalando muros, quantas vezes fui surpreendida na ala masculina do internato?

Nem me lembro mais!

Já esperei e esperam muito de mim, não estou à altura de esperas e creio que foi um dos poucos que nada esperou de minha parte.

Cobram-me um preço alto demais por escolhas equivocadas, sofro por não me encaixar nas necessidades alheias, mas nem por isso desisto de ser quem sou.

Tentei, por muito tempo, vencer esse sentimento autodestrutivo que toma minha rotina desde que me entendo por gente. De me trancar com meninos nos banheiros masculinos no colégio e até me deitar com desconhecidos.

Lanço-me contra muros embolorados e densos, construídos por outras pessoas para conter o inevitável, para deixar de fora o que seja constrangedor.

Nem sei o quanto me estraçalhei, sem tirar um tijolo alheio do lugar!

As minhas vontades tiraram-me o uniforme, as meias ¾ e as saias plissadas que não me importunavam tanto. As camisas brancas e a gravata incomodavam, oprimiam-me o peito, apertavam a garganta, não me deixavam respirar.

Soava-me castrador a imposição do igual, uniformes, rotinas, contratos e hora marcada são fivelas de camisas de força.

Sei de meus pecados e não os ignoro, embora os julgue menos pesados do que não saber definir de maneira simplista onde me perco e porque desisti dos contínuos esforços para mudar minha atitude.

XI

E pensar que foi tudo tão rápido, a ponto de não me dar conta de que saborear pequenos momentos vale mais que uma vida inteira de esperas inúteis.

O automóvel ia a mais de cem por hora, nossos corpos a mil e seu membro em minha boca, e aquilo era tudo que desejara além da adrenalina da velocidade.

Quando os navios ancoravam no porto, corria como criança ao encontro do cais, a meu modo enchia-me de alegria ao vê-los aportando, pois era a possibilidade de te reencontrar.

Evitei a melancolia nesses dias solitários e frios, em que a geada encobriu as alamedas e matou alguns mendigos. Só agora percebo que nos amávamos, mas sempre é tarde para rememorar e quase dói.

Retiro pele sua sob minhas unhas e sei que carreguei mais que isso, o cheiro de maresia permeia meu hálito e dilata minhas pupilas.

Quando esbugalhava os olhos e me dizia: “é só sexo, baby” e eu sorrindo repetia: “sim, é só sexo”, alguém mentia.

Enquanto os neons inconstantes refletiam em nossa parede nua, chamando para a boite Le Burlesque Noir, latejávamos em fúria grotesca.

E quem ousaria dizer que foi tudo um engano, baby?

XII

Ao caminhar distraída pelo centro, numa manhã qualquer, vi um bêbado caído na rua, com a cabeça recostada no meio-fio, senti vontade de levá-lo para casa, como fez comigo!

Lembrei-me de quando fugi do colégio, sem ter para onde ir, numa noite fria e sabendo do castigo que receberia me sentei na calçada e chorei. Muitas pessoas passaram por mim e só um bêbado todo sujo e rasgado veio me perguntar se eu precisava de ajuda. Um bêbado que encontrei na quinta esquina, que teve a gentileza de querer saber de mim, poderia ter tido medo, poderia ter gritado e corrido, mas não tive nenhum receio. Olhei direto nos olhos dele, já enxugando minhas lágrimas e disse: “não quero voltar!”

Ele sorriu e me disse: “nem eu, nem eu!”

Contou-me de sua saga na cidade, de seus sonhos caipiras, em dado momento a história dele começou a se parecer com a minha e acabamos bebendo na mesma garrafa e fitando as luzes que passavam por todos os lados. Com ele esqueci-me do frio, da fome, do medo de ser castigada e vimos o dia amanhecer esverdeado e quadrado como o fundo da garrafa vazia.

XIII

O que acaba comigo é a realidade, baby!

A verdade sobre os ombros dói mais que os golpes da palmatória e ainda trago marcas desses golpes em toda extensão da alma. A realidade arde bem mais que mãos depois do castigo!

Por muito tempo me enganei inebriada pela inocente certeza de ser única, especial, insubstituível.

Mas ao comprar meias-finas entendi que não fazem apenas uma e sim milhares delas, para mulheres que por algum tempo têm o mesmo gosto, vestem o mesmo número que eu!

O que me diferencia das outras são esses olhos enormes e agateados, vêem longe e atraem rápido demais!

Nunca quis esses olhos, nunca quis olhar as coisas com esse jeito de cachorro-do-mato, como quem assalta o galinheiro com prazer e foge para não ser apanhado.

Vejo as coisas como são e não quero encarar, desejei um filtro que me protegesse dessa dor nos olhos e não há óculos escuros que me livrem da verdade.

Recordei-me de uma noite em que me perguntou por que eu pedia para me foder com a força que tivesse e naquela época não tinha a resposta.

Hoje tenho.

O que não dói, não machuca, não penetra fundo e não rasga, não é real, baby!

XIV

O engraçado é querermos colocar no outro a culpa de nossos defeitos.

Não sei bem porque meu avô materno era meu ídolo, acho que por um tempo o amei mais que ao meu pai. Talvez por ele ser muito permissivo comigo, deveria ter me posto freios antes de eu desembestar!

Sinto que aquela frase foi pior do que ser estuprada ou cuspida por um estranho!

E acabo retornando àquela padaria cada vez que tenho que escolher algo.

Carrego o vício de não saber escolher, aliás, o mal é mais grave, não escolho nunca, dou-me apenas o direito eterno das pequenas dúvidas e das grandes desistências.

Minha inocência foi perdida ali, no meio daqueles doces, com o cheiro de baunilha no ar!

Para mim não era apenas escolher um e sim abdicar das infinitas possibilidades contidas em cada opção desprezada.

E a farsa continua e se repete como ciclos de sofrimento absoluto, eu me embriagando e seguindo caminhos perigosos de desistência.

Meu avô sussurrou-me ao pé do ouvido: “você pode escolher o que quiser, minha linda!” e assistiu inerte aos meus olhinhos pedintes e desorientados e não alcançou o mal que me fez!

Ah, Kerouac, ali começou minha saga de vícios e insatisfações!

Ah, vovô, ali descobri o que era livre e quão difícil é escolher!

XV

Tive outra crise de bulimia nervosa, doença que não me perturbava desde os treze anos.

Naquela época não entendia e nem os médicos sabiam o motivo das crises. Mesmo com fome, meu corpo se negava a segurar qualquer coisa que comesse.

De forma inconsciente, me punia por não fazer todas as coisas que tinha vontade. E num ato de revolução berrava com dores descomunais, nenhum remédio me curou! Ardi em febre por sete dias, a pele latejava entre brotoejas que estouravam feito a verdade que explodia por dentro. Insatisfeita com a vida que me impunham, sentia nojo de minha imagem e de tudo que representava para aqueles que cobravam algo de mim.

Ora, eu tinha tudo que uma moça poderia querer! Vestiam-me nos mantos da vitória social burguesa, formavam-me num colégio católico e iam me casar com um político, ou um advogado, um médico, quem sabe. Ele viraria meu dono, me sodomizaria e eu viveria ali apenas pra servi-lo na cama e na mesa, a mucama de luxo!

Só podia vomitar, regurgitar a sopa imposta, servida como a realidade intragável que era minha vida.

Ansiava por um corpo, como o da Irmã Clotilde clamava pelo de Padre Bernardo sob o hábito. Ah, era aquilo que eu desejava, a expressão de felicidade incontida, o grito dela abafado pela mão dele, o prazer escondido na capela do colégio, só queria aquela febre!

XVI

Por conta de minha crise minha mãe veio me visitar, sabe que não gosto dela!

Deve se lembrar de quando ela apareceu, logo que me levou para morar com você?

A cara de nojo que fazia ao olhar as nossas coisas e aquele lencinho ridículo que colocava na cara, como se tudo estivesse contaminado e fétido!

É mereceu o apelido que deu a ela: “Dona Pedra”!

Vi diferenças nela dessa última vez, tinha os cabelos bem mais acinzentados, os olhos estavam caídos, não eram mais aqueles olhos superiores e altivos que ostentava no rosto sisudo, sobre aquele pescoço longo, quase vi meiguice.

Trouxe algumas roupas dela que não usava mais, de bom tecido, dizia que era pelas cores, não ficavam bem em uma viúva. Como sei costurar, fez questão que as reformasse para mim e citou as tais grifes que tanto deu valor durante sua vida inteira.

Estava mais entusiasmada com os vestidos que eu. Observei o cenário com atenção, uma felicidade incontida parecia outra pessoa, não a minha mãe. Por um breve momento vislumbrei a possibilidade das pessoas mudarem.

Em certo momento me perguntou se havia visto minha caixinha, como não havia visto, procurei no meio de algumas peças de roupa que sobraram na sacola. Sim, reconhecia a caixa de prata, meu pai trouxe como prêmio de consolação por esquecer o dia de meu aniversário de nove anos.

Ela me contou que sempre que olhava em cima da penteadeira lembrava a cena de meus irmãos destruindo o jardim e que eu catava as migalhas das flores guardando todas nessa caixinha.

Veio-me a cena tal qual acontecera: eu catava os retalhos da destruição de meus irmãos e falava baixinho vou te curar, tudo vai ficar bem!

Como se existisse algo que pudesse desfazer o esgarçamento das flores despetaladas.

XVII

Por vezes me pegava com o crucifixo que me deu entre os dedos, não para rezar, apenas pra ter a sensação de quando o amarrou em meu pescoço dizendo que o que nos enforca é a fé.

Todos os cigarros que acendi desde então foram em sua homenagem, não pelo vício, mas pela carga similar a sua, entram em autocombustão por trazerem pólvora na veia.

Estou sozinha desde que me entendo por gente, já tenho noção desse estado faz algum tempo e não ter alguém que confio para desabafar me corta ao meio.

Nunca trouxe a leveza das plumas comigo e ao caminhar com sapatos altos arrastava-os no asfalto até perderem a sola. Às vezes invejava as mulheres que passavam pelos estacionamentos no centro da cidade, escondidas em seus vestidos finos e em seu caminhar elegante. Para ser elegante é preciso ser leve e minha consciência pesa mais de meia tonelada, baby!

Meu consolo era me ater à sua presença, ouvir suas histórias, compartilhar de seus amigos, assim as angústias se calavam, mas não me bastava aquilo tudo, nasci para magoar.

Quando tranquei pela última vez a porta de nosso apartamento esqueci-me de como é chorar, travo a mandíbula e feito animal coagido entrego-me ao silêncio.

A escrita tem sido uma válvula de escape, a única, dissolver-me em palavras alivia o peito e ainda assim, feito Sísifo carrego a pedra de erros nas costas, sem ter a quem recorrer.

Não trago mais o crucifixo que me deu de presente, gostava de trazê-lo entre os seios para me lembrar da maneira que passeava com sua língua entre eles. Precisei penhorar a jóia para não passar fome. Ainda não consegui resgatar nem a jóia e nem a fé!

XVIII

O caso é que éramos muito jovens e eu adorava me exibir para você, usar o charme que tinha para ludibriar trouxas e me gabar depois! Engano-me dizendo que não sou mais assim, embora ainda queira arrumar alguém que trepe comigo pelo menos duas vezes seguidas antes de pegar no sono e me trate com o desprezo que encontrei nos becos da cidade baixa.

Chove agora depois do calor infernal, aqui não existem as quatro estações e creio que se Miller descesse aos trópicos descobrisse a real intensidade de seus escritos sobre a carne castigada pelo calor, ele seria menos voraz.

Serão dias de chuva sem meio termo, tudo é suor e afetamento, pois não há remédio para esse meu estágio desgastado e febril. Quem dera tivesse só vocação para o martírio, o clima já derriçaria com os dias úmidos e mofados e as noites seriam devotadas apenas para o prazer.

Em março o inferno é aqui, não é branco nem colorido, é marrom acinzentado. Queria estar chapada, sob o efeito de um barbitúrico qualquer que me afastasse dessa sobriedade nula e cortante.

Como já disse estou tentando me endireitar, sentir o prazer como a maioria das pessoas: três refeições ao dia, dormir um pouco mais, não pensar muito e sentir cócegas.

Mas ainda penso e o pensamento pesa, lateja e tira o sono, baby!

Enganei-me por muito tempo, pensando que a satisfação reside nas coisas e descobri que o prazer está além do objeto.

Mas sei também que se não beber, não fumar ou me enterrar em minhas pílulas não conseguirei prazer imediato. Percebo que não enganei ninguém, que os trouxas ansiavam por ser enganados para terem o que queriam de mim, eu era só um objeto.

XIX

Conseguia passar horas velando seu sono, como se uma loucura me tomasse os olhos e trouxesse-me a quietude quase vazia do contemplar.Foi minha religião por muito tempo, um recanto onde ainda me encontrava e voltava a me perder.

Nunca foi um ser abstrato ou um borrão desses que se prende aos sistemas impostos, nem tão pouco era um observador acocorado fora do mundo. Era a realização fantástica de tudo porque eu não construí.

Não tive nada de verdadeiro, nada de real antes de você. Alienei-me de meu fracasso para viver o seu entusiasmo, as suas histórias preenchiam minhas lacunas de forma pitoresca e ácida.

Sem você, eu era o retrato da miséria pessoal, nada mais que o suspiro do oprimido, desânimo de um mundo sem sentimentos bons. Enquanto digo isso me dou conta de que a felicidade é ilusória, não passa da exigência utópica que cultivei por muito tempo.

E seu apelo era para que eu abandonasse as ilusões a respeito da minha condição, era o apelo para abandonar uma condição que precisava de ilusões e ainda quero me enganar.

A realidade arrancou as flores imaginárias, como fizeram meus irmãos anos atrás. Não para que eu suportasse as coisas sem fantasias ou consolo, mas talvez para que não me iludisse que tenho o poder de curar tudo.

XX

Esforcei-me ao máximo para não falar em certas lembranças com você, mas como de algum modo tudo que escondemos vem à tona na pior hora possível é chegada minha hora. E não há uma maneira mais fácil e menos dolorosa de fazer isso, baby!

Saí de nosso apartamento naquele setembro fatídico acompanhada, bêbada e consciente de minha condição. E imagino que se ficasse você se afastaria de mim aos poucos esqueceria o motivo de ter me tirado daquele beco e talvez tudo o que vivemos dali para frente seria um simples prelúdio. E isso seria insuportável para mim!

Preferi trazer comigo essa imagem irretocável de quase-perfeição.

Parti dona de mim, trazendo uma dor lacerante e um filho seu, que eu não queria, dentro de mim.

Por um tempo usei o álcool como se fosse prescrição médica, servia-me como um anti-realidade que me curava da agonia mental causada pelos breves períodos de sobriedade.

Rejeitei até o fim a ideia de ser como minha mãe e injetei a morte de seu filho na veia, deixei que o cortassem e o levassem de mim, sem piedade, mas não sem dor e culpa.

Agora depois de alguns meses sóbria vejo as coisas com uma clareza insuportavelmente cortante, como que tivesse recebido um dom maldito, o da clarividência. Não aquela que de ver os mortos ou ter pressentimentos ruins. Vejo coisas, lugares, pessoas que parecia nunca ter visto antes. A luz tem um tom branco invasivo, já não é amarelada e fosca, descobri que a paz segura que procurei por algum tempo não existe.

Vejo que as coisas e lugares que desconheço são parte de um passado ébrio e nauseante que vivi e que me persegue, mesmo que eu o aborte todos os dias.

Sinto falta do que não fomos.

XXI

Sabe do pavor que tenho por certos insetos, não é baby!

Deparei-me com baratas, pernelongos e aranhas por muito tempo.

As coisas são diferentes hoje, quase não os vejo mais, nem sei se porque dedetizam ou porque minha visão está cada vez mais fraca.

Outro dia vi uma aranha espreitando m minha sala, ela se esgueirava pelo tapete se aproveitando da pouca luz.

Sou ruim, Jack, muito ruim. Observei a pobre fazendo o trajeto pela extensão de todo o tapete, mais ou menos uns dois metros e meio. Acendi um cigarro e esperei que ela chegasse bem perto de meus pés, então a queimei com a bituca do cigarro.

Somos insetos nas mãos de outros seres humanos. Vulneráveis e à mercê de suas vontades cruéis. Sei que serei exterminada como a aranha que matei.

XXII

Tenho o péssimo hábito de querer boxear com pugilistas mais fortes que eu, dessa vez desafiei Holyfield, um peso-pesado e eu estava de olhos abertos e sóbria, só podia mesmo estar querendo levar uma surra.

Jack, no fundo, sabemos o fim da história e não sei o motivo, mas a gente ainda insiste. Passei minha vida desistindo de tudo que era bom para mim.

Achava que era autodefesa, uma tentativa de me proteger, mas sei que era medo, medo de enfrentar uma escolha, não sendo eu nem peso-pena, ou seja, sendo só uma mulherzinha que mal sabe bater!

Outro dia senti aquela coisa de novo, aquela sensação enganosa que nos ludibria com a frase: “vale a pena”. Mas sabe a voz de meu avô, sim ela voltou também! Mais uma vez ela me dizia: “vai se machucar”.

Ouço a voz dele só em iminência de perigo e na maioria das vezes fujo, mas deixei passar, sufoquei, mesmo de alguma forma sabendo que era verdade o que dizia. Até quando vou pagar para ver? Até quando vou poder pagar para ver? E é cada vez pior, querer pode ser bem pior do que se imagina, e não é uma piada, baby!

No começo ele só brincou comigo, como se eu fosse mesmo aquele João-bobo, ficou com pena, talvez. Chegou a ser doce e agradável, gentil, por assim dizer e foi quase um pás de deux o primeiro round! Quase respeitoso e tocou-me a luva, mas agora percebo que foi um teste, um estudo do inimigo, um deboche velado.

No segundo round, ouvi a campainha mais de uma vez, parecia que ela tocava dentro de minha cabeça. Foram as sequências de golpes e deixando bem claro que ele foi limpo, nem meio golpe baixo!

Jabes seguidos e alguns diretos e enfim um cruzado!

Nocaute, sem ao menos eu ouvir a contagem. Tenho gosto de meu sangue na boca e ainda me dói, mas já estou farta do bordão da dor, não é baby, nem ele me é suficiente!

XXIII

O que a água e sabão não lavam é o sentimento, baby!

Sinto-me suja como antes, do mesmo modo de quando me arrancou da sarjeta!

Não consegui pensar em maneira melhor do que acabar com tudo do que envelhecendo. Criando rugas e manias senis, chorando meus mortos e me olhando sem ver nada de mim. Sábio foi você que morreu cedo, que se entregou ao caos mundano sem freios ou estacionamento.

Penso mais no passado que no presente, quando não são os brancos, buracos negros a me perseguir sem trégua. Riria de mim se eu dissesse que não lembro das suas fuças, pois não lembro.

Recordo-me do cheiro de cigarro que trazia em sua jaqueta de couro surrada e do cheiro daquela pomada que você usava para tudo, desde desodorante a lubrificante, você cheirava Minancora.

Talvez o suplício maior seja pensar nos vermes, pobrezinhos... Terão que acabar com meus restos, se é que lhes sobrará algo. Pense em alguém que odiava calcinhas, rendida agora em fraldas geriátricas, se houver algo pior que a vergonha de se borrar, eu desconheço.

Você sempre cheirou bem, baby!

Mesmo os cigarros, a maresia e a Minancora, tudo vindo de você tinha cheiro de vida.

XXIV

As esperas são pequenas mortes, baby!

Perdi a conta de quantas vezes esperei algo extraordinário acontecer e acabei me vendendo para manter nossa relação, ovos e bebida.

A dimensão das coisas não me assustava tanto, sei que não me cobrou muito, mas nesses tempos que só tenho a mim, vejo que pode ter custado mais me tirar das ruas e me manter limpa.

Nunca aprendi a usar as palavras como você, sempre lidei melhor com a bebida.

Se algo me afetava eram as garrafas vazias que ouviam meus soluços de gargalo.

Quisera eu, baby, uma mulher que nasceu nos melhores berços e acabou nas ruas, saber me expressar tão bem quanto você.

Mas as coisas não são assim, como queremos. Tudo foge ao controle e só agora entendo isso.

Devotei minha vida a um sonho, quis a liberdade e provei por alguns anos amostras dela e no restante do tempo vivi das lembranças dela!

Não fiz a conta de quanto paguei, ou de quanto pagou.

Só agora tenho noção que foram os melhores tempos de minha vida.

Enfim, estamos quites!

XXV

Passei os últimos meses tentando evitar, sem sucesso, qualquer sensação que me remetesse a você. Mas não consigo separar a consciência diária dos acontecimentos que me trazem lembranças suas.

Moro num lugar quente, muito quente e o calor enlouquece as pessoas, creia-me!

Queria sair correndo, sem roupa no meio dessa gente que demonstra tanto desprezo por mim. Se estivesse ao meu lado, talvez tivesse a mesma coragem de outrora.

Hoje o máximo que poderia fazer seria compor um ensaio sobre como o derretimento das calotas polares, o aquecimento global mudam o comportamento cognitivo das pessoas. Rindo sozinha e imaginando alguns graus a mais cozinhando os miolos de alguns! Foda-se, não é disso que quero falar, morrerei logo, independente do clima desse mundo de merda!

Surpreendi-me por não estar magoada pelo fato de descobrir amor nesse peito que já julgava morno e entregue ao movimento marítimo do vai e vem das marés. Sei que nesse momento brota um sorrisinho cínico, de canto de boca, bem aquele que esboçava quando tinha razão e eu teimava. É verdade, tenho que me retratar, aprendi que o querer bem é melhor assim, vivenciado dessa maneira tosca e hipócrita que você vivenciara há décadas atrás. E acabei me aconchegando nos braços de alguém que me diz o que quero ouvir. É o maldito vício humano, baby! O apego à mentira doce e afável para sobreviver ao caos egoísta que a realidade nos impõe.

Fugi desesperada de nós e dessa realidade da maneira mais segura que encontrei, tentando me libertar e iludida nessa utopia me amarrei a alguém muito diferente de você.

Sei bem que ressaltava as vantagens de sua vida sem vínculos, que no frigir dos ovos era como a minha antes de me tirar daquele beco, mas sou uma mulherzinha, Jack, no fim sou apenas uma mulherzinha, igual a todas as outras de minha espécie. Eu só queria estar a salvo, encostada num corpo quente, ter alguém para dividir um teto e me contar mentiras doces. Estive cega por um tempo e só consegui alcançar-te quando já estávamos distantes demais para reatar.

“ ─ É tudo mentira, baby!” – ainda me lembro dos seus olhos quando me dizia isso.

Agora que tenho o que sempre quis, falta-me algo, falta-me tudo!

XXVI

Nunca fui grande coisa, baby!

Uma menina quieta, uma moça que gostava de sexo, uma mulher debochada e hoje mais calada do que gostaria.

Fui muitas mulheres, mais do que pude suportar em mim, mais do que pude controlar e independente de quem fosse eu era sua!

Quem dera eu me amasse na mesma intensidade que me entreguei a você!

Quem dera tivesse faro para os negócios como para homens errados!

Corri o mundo em busca de aventura e um pouco de diversão, tentando esquecer os meus e quando podia tripudiava, ria, debochava de suas vidas medíocres e insossas, devotadas ao convívio social brando e poético.

Cada vez que caía de bêbada, que me entregava a um estranho ou despertava em alguma esquina fria, era para eles que devotava meu primeiro pensamento. Por vezes até me perguntava o que estariam fazendo naquele momento.

Os quitutes que minha mãe exibia pela manhã soavam-me afronta. Como poderia perder tanto tempo comigo, justo comigo que a desprezava tanto!

Acho que minha revolta nascia ali, por entender cegamente a fuga de meu pai, por não suportar aquela mulher sem atrativos, devotada a tarefas menores.

Meu pai era um porta-retrato sobre a penteadeira dela, que me olhava todos os dias enquanto eu me penteava. Quantas vezes ele me ouviu chorar e guardou minhas confidências, conselho nunca deu, mas esteve mais presente do que minha mãe!

Choveu muito por esses dias e as marés estão mais altas que o normal, o mar quebra mais pesado que nunca. Ontem o mar invadiu a lagoa, a praça, levou carros, ilhou bairros e matou pessoas. Como se algo precisasse ficar cheio e sujo para que eu entendesse que não são apenas faltas que me fazem mal, os excessos também me afetam.

Acordei encharcada de suor e sangue, o suor é a saudade que tenho de minha mãe e o sangue é por saber que metade de meu DNA é aquela fotografia sobre o móvel.

XXVII

De onde vem essa sensação de que as coisas são tão iguais e que mesmo assim ainda posso sentir falta delas?

Algo que me aflige todos os dias são essas molduras que suportam os mesmos quadros há décadas nessas paredes, o mesmo relógio, as fotografias sobre o piano.

O par de chinelas e os elos que se arrastam de madrugada pela casa em silêncio, minha casa hoje se parece com a casa de meus pais. Cortinas empoeiradas, sofás confortáveis para que as pessoas possam cochilar neles, armários lotados de coisas inúteis e o velho silêncio.

Esse pesa e assusta mais que os de outrora, ainda que não tenha mais o impulso de liberdade desenfreada que cultivei, ainda que segura e distante dos atentados invasivos, sinto-me aflita.

O portão range mais que de outras moradas, o calar da noite é mais intenso.

Nossa vida tinha mais música, mais soul, baby!

Já vi mais sentido nas coisas e meus copos eram mais vazios.

Hoje é a incansável xícara de chá sobre o pires e um guardanapo para sufocar o atrito.

Os sons e o atrito não são permitidos por aqui, Jack! Todos dormem, o silêncio é brutal e nauseante.

Por vezes, o barulho de carros acelerados rasga as madrugadas, meu coração dispara na lembrança nossa.

Se não fossem esses rompantes que cortam as noites e minhas esperas vãs, não sei o que seria. Pobre de mim que já fui tão irreverente e soberba, agora entregue ao desespero das noites de insônia.

Sou um arquipélago, como o relógio de sempre na mesma parede mofada avisa a cada segundo que apodreço, os retratos sobre o piano não me deixam esquecer isso.

Sou um morango embolorado e minha mãe dizia que um morango estragado dentro de uma caixa contamina todos os outros. Já estou concordando com ela, quase a entendo...

O que mais me faz falta são os bigodes desalinhados de meu pai.

Deixou-me palhaços e bonecas de louça, mas o colo que tanto quis foi para as putas em seus passeios noturnos, ou para empregadas que o visitavam no sótão durante suas longas noites de insônia.

Deparo-me com a dor de ser órfã, com mãe viva, sem filhos, sem um lugar que me pertença, sem paz.

XXVIII

Todos os dias se tornaram quarta-feira de cinzas!

Não há palhaços ou alegorias finas que durem mais de três dias!

Acho que me esqueci ou relutei demais para banir essa fantasia de minha vida, como um elmo que depois de encontrado é difícil devolver para a terra.

Ou aquelas máscaras venezianas que teimamos em pregar em portas e paredes velhas para que nos lembrem de que somos falsos!

Quem sabe mereça ser esquecido, como cadáver jogado em vala comum, indigente!

Guardo você por tempo demais, um relicário que me faz lembrar o que sou, o insólito de solidões mais profundas.

Quisera ter a coragem doutras eras e ser-te ingrata., mas desaprendi!

Mas não há como esquecer sua mão a me puxar da sarjeta, o colo nas noites frias, o silêncio das horas mais certas!

A sua estadia conturbada me deixou o pago de sabedoria e força.

A idade também tem suas recompensas, seja a proximidade do fim ou o aprendizado lacerante.

Meu desejo hoje é deixar de pensar em tudo que não fomos e esquecer o cansaço. Tentarei voltar pra mim, embora acredite que nada é esquecido.

─ O passado é Medusa, baby! Não me verá olhando pra trás, não quero virar pedra!

Carrego seu querer por mais tempo que suportaria qualquer outra coisa, não sei abandonar você feito alegoria e seguir caminho, descobri em hora tardia que não há liberdade, são poucas as escolhas e por mais que me prive desse frisson de lembrar mais marcado em mim está.

Sim, eu sei Jack, sonhei mais do que tive e brindei os sorrisos, me livrei das derrotas estando ao seu lado.

Amar você em me odiar é remédio para meu caos interno, é quase solução.

Definho, pois a memória é bandida me faz enxergar melhor sob as linhas do não dito.

É o sufocar dentro de cada cigarro, evaporar a cada trago que bebo quem dera fosse fácil assim?

Faz três dias as cólicas do aborto de nosso filho me doem, três dias, todo maldito mês é assim.

Seria um homem hoje, se eu não o tivesse matado e talvez me apoiasse no meio desse labirinto. Talvez visse no olhar dele os seus olhos e me doesse menos a falta que me faz. Pior seria vê-lo como o flagelo culpado por ter te abandonado, sempre pode ser pior, baby!

XXIX

Hei de redescobrir a fórmula para calar os gritos que me tomam nesses desertos lotados de personagens que já vivi. Sim, talvez afogá-los em caos íntimos, naquela solução menos dolorosa para beber, que há tempos me ensinara.

Reaprender a secar esperas, dormir o dia inteiro e vagar à noite.

Por um tempo era o poker, hoje é o remanescente jogo de paciência que gira em meu baralho inerte.

Cansei de reclamar do passado e me comportar como um ser caquético e irresoluto.

E vem aquela voz mais ríspida que manda calar a boca e beber até desmaiar. Tudo ao mesmo tempo agora e em alta velocidade!

Pois que se for para chocar contra as coisas que seja para despedaçar, baby!

A voz maldita ecoe dissonante, a junção das falas de vários dos homens que passaram em minha vida, cuja visão da mulher perfeita é a que geme de prazer, aquela que não fala de dores, não chora e só sorri permissiva.

Cansei de ser mulherzinha, estou velha demais pra isso, Jack!

Quero ser massacrada pela angústia mais torturante e agora abri todas as minhas comportas. Não suporto mais o desistir!

Não me doei mais por altruísmo, creio que é o que me falta, me dar a alguém que precise de mim e nessa hora não me sinto essencial.

Esse lugar me passa, tem luxo e zelo em excesso, parece frágil e imexível e isso me incomoda demais.

Outro dia vi um menino maltrapilho, sentado bem em frente ao meu portão, saí e o olhei de lado. Pés sujos, mãos entrelaçadas, trazia um cheiro ocre de abandono, seus olhos miúdos e fixos não me perceberam, parecia devotado ao chão, tive medo que ele me olhasse.

Não sei dizer o motivo, mas tenho medo de tocar o que desconheço e eu não era assim.

XXX

O que nos afasta da realidade é a civilidade, é o egoísmo, baby!

Não direi que fujo à regra, querem seu melhor, mas não dão nem uma migalha de si.

Quero o melhor dos outros, mas me guardo em retaguardas para não me ferir gravemente, salvo raras exceções.

A civilidade é o oco do mundo, compram-nos presentes caros, fantasias baratas e reduzem a existência a um espetáculo burlesco.

─ São os tópicos! É o carnaval, baby! - como você bem dizia - Uma alegoria transitória que se desfaz em poucos dias!

Nos deixamos envolver com a música, com a festa e a dança e esquecemos que a pintura e os disfarces não duram.

Ainda admiro você, Kerouac, tinha uma sinceridade crua, quase agressiva, mas não me decepcionava, nunca me decepcionou.

Tinha a capacidade de me foder sem palavras doces e de dizer ainda me penetrando:

─ É só sexo, baby! É só mais uma para mim! Não se apaixone!

Por mais que doesse escutar aquilo, naquele momento, eu segurava firme em seus braços e implorava por mais! Isso de certa forma me fez mais forte.

E não consegui odiar você por isso, não consigo te odiar!

É fácil cobrar o que não se tem, o que se desconhece, o que te privam.

Difícil é ser fiel aos seus princípios e ter coragem de confessar o inconfessável.

XXXI

Num dia comum trouxe-me um relógio e uma garrafa de vodca. Mimo perfeito para uma escritora decadente. Um me faria lembrar do tempo perco engendrando filosofias maiores que meu entendimento pode alcançar, o outro para esquecer o resto.

Agora vejo que acabo falando feito você, Jack, com aquele ritmo erótico-sarcástico, que imprimia em suas falas e que fez com que eu me apaixonasse tanto.

Sim, a palavra esgarça tanto meu sentimento que me comovo e me encho de piedade a me ver ainda tão ignorante e deslumbrada.

Por estar distante de qualquer pessoa que me entenda ou que eu possa contar tudo isso sem que pareça uma ladainha sem começo e sem fim.

No fundo, acredito que a maioria de nós pousa a cabeça sobre o travesseiro querendo dizer algo e não tem coragem.

Se abrir é perigoso, é se desarmar. E se ver frágil ao lado da pessoa com quem divide até a escova de dente é pernicioso. Temos pesadelos que não ousamos nem confessar a nós mesmos.

Sim, o mais velho e ancestral companheiro do homem é o medo da loucura, isso é o que aflige a todos, inclusive a mim, Jack!

Lembro-me do dia que me disse:

─ Você é só mais uma, baby! Não se apaixone por mim!

XXXII

Suas dúvidas me alimentavam e eu já imaginava onde isso tudo ia dar, não sabia o caminho que percorreríamos para isso, mas não poderia ter outro desfecho que não esse.

E quando me dizia que estava com outra mulher, mas não suportava a ideia de eu andar com outros homens, mesmo que isso tenha nos dado mais do que tivéramos até ali. Esse seu machismo desavergonhado, a desculpa perfeita para me fazer ciúmes e me trazer de volta pra casa.

Vejo que meus passos eram e ainda são rumo à autodestruição, muitos tentaram me salvar, mas eu não presto, não presto.

De certa forma me via refletida em seus olhos negros, pedintes, aquele desespero de quem mal sabe dizer que ama e que repele, expulsa e pune quem tenta.

Como meu avô dizia:

─ Venha minha menininha, ver o boi antes dele ir pro abatedouro, espie só o desespero no olho do bicho!

E eu, mesmo sem saber via no olho do boi o meu desespero.

Sou um amontoado de mentiras doces e de realidades desastrosas.

Sou construir, alimentar e depois destruir para viver à míngua, à margem!

XXXIII


XXXIII

Poderia pintar meu mundo todo de vermelho, um vermelho de amor, um vermelho desesperado, num grito de socorro, um vermelho encarnado de desejo e sangue, como se nas paletas não existisse sequer outra cor, mas não esqueço, não aprendo e não perdoo.

Nossas noites eram de febre e loucura, na grande-pequena cidade, ali naquele apartamento onde os letreiros da esquina tingiam nosso quarto de vermelho-neon e como esquecer que o cenário nos fazia querer mais e mais. Penso como nos afastamos tanto, não posso esquecer seus olhos e suas palavras doces em tempos estranhos.

A saudade e era imensa, quase insustentável quando saía, as horas passavam lentas e em certos momentos vivia por obrigação, na esperança de vê-lo no próximo barco ou bote salva-vidas no horizonte.Deveria aprender a esperar com suas idas, a chorar sua ausência, a dar valor em sua estada. Mas tenho talento para fazer tudo errado.

E quando pedi para ficar, pela última vez, quando finalmente cedi, quando mais precisei de apoio e proteção e me vi frágil e com medo, você fechou os olhos e caminhou por sete quarteirões, sem ao menos olhar para trás. Abandonei nosso lar e meus sonhos e não culpo nem a mim e nem a você. Mas ainda não aprendi a esquecer, nem tão pouco perdoar.

XXXIV

Somos seres sugestionáveis, escutamos histórias que nos repetem desde a mais remota civilização, somos convencidos que o caminho do meio, nem o esquerdo ou o direito. O morno, nem o quente ou o frio, nem o bom ou o ruim demais, o meio.

Esse é o caminho para o bom cristão, pois a luxúria, a gula, os excessos são pecaminosos e sujos.

O que nos sobra faz falta para alguém, os desperdícios particulares são mínguas alheias, como se isso fosse mesmo verdade.

Por isso não sigo regras, descobri cedo que desmedir os sentimentos e deixar-se à revelia dos excessos é a melhor maneira de se sentir vivo.

Os amantes jovens brincam de esconde-esconde, aquela premissa de correr na frente e se camuflar, para se misturar com a paisagem e não ser encontrado e no fim se atingirem com sustos. Pouco muda durante toda a relação, as confissões de amor desmedido, as pequenas punhaladas que fazem sangrar de alegria e de dor, que trazem dor, culpa e dúvida de sermos merecedores desse sentimento.

Os ciclos viciosos que não se quebram nunca. O eterno esconder, e cada vez mais e cada vez mais nocivamente.

A pessoa com quem dividimos nosso cotidiano é a que mais nos desconhece.

A loucura também nos é desculpa parar fugir de tudo que nos aflige e nos atinge em cheio. Tudo que não se entende ou não quer explicar é loucura.

Quando ganhava a vida nas ruas sabia bem o que era felicidade, era o que dez noites de sexo incessante pudessem comprar, ou o que me sobrasse delas.

O inferno e o céu estão muito próximos em ideologia e nenhum deles nos salva.

XXXV

Aprendi desde muito cedo que ser mulher não era muito bom. Vovô me dizia quatro vezes por dia, cinco vezes por semana:

─ Use seu charme como mulher e enfie a faca como homem!

Essa foi uma lição que me valeu muito!

Mas mesmo assim sou fragilizada pelo sentimentalismo, alimento o querer bem e me dou mal.

Não se gabe por ter salvo minha vida, não foi o único!

Meu avô preservou minha sanidade durante toda a fase mais difícil que vivi e me avisa ao ouvido até hoje quando algo pode me machucar demais.

Você não foi o único, trago uma cicatriz profunda em meu ombro esquerdo, de uma noite marcada com sexo, suor e sangue. Quem salvou-me foi um travesti mais esperto que eu.

Enfim, os homens são mais espertos que as mulheres, mais safos e sinto-me uma tola, traída e salva por eles.

Aliás, acho que as fêmeas não passam de joguete nas mãos masculinas, moeda de troca, de sedução e de poder.

─ Um sorriso por uma moeda! – dizia o vovô.

Aprendi na marra uma lição bem mais perversa e tracei minha vida sobre o inverso do que aprendi.

Quando fiz o caminho contrário ao que meu avô me ensinou quando criança: uma moeda por um sorriso, entendi a essência humana.

Agora é aprender até quando pagar para ver, ou fazer com que paguem para ver. Mas essa não é uma lição tão simples quanto a primeira. Se houvesse um limiar do suportável, como ter consciência de quanta verdade podemos suportar?

XXXVI

Por vezes a solidão é tão acompanhada que me sufoca ainda mais. Estou cercada de estranhos gentis, que a qualquer momento podem se rebelar, tomar meu território, apossarem-se de minhas horas preciosas com assuntos pueris e por fim envenenar meu chá.

O jardineiro lá fora cuida de assassinar as flores que cultivei por anos e ainda me cobra por isso. Penso que se deixasse as trepadeiras tomarem o portão e a fachada da casa o ambiente fosse mais propício ao meu isolamento, uma barreira talvez para olhos curiosos. A faxineira cuida para que tudo permaneça limpo e cheirando à alvejante. A cozinheira prepara quitutes com o mesmo sabor dos de minha mãe, pensar que tive raiva deles quando jovem.

Desaprendi de sentir, desaprendi de amar, as coisas perderam o frescor e o calor de outrora e me sinto cada vez mais entregue ao sentimento da morte. Custa-me envelhecer, encarar meu rosto tão velho no espelho inda reluzente me incomoda, mas não o suficiente para que eu pare de me pentear. As coisas estão sempre frias, Jack!

A sala está vazia e observo todos os objetos em sua harmonia costumeira. Os velhos retratos sobre o piano silencioso, os livros alinhados cada um em sua prateleira lembram replicantes que quase tudo nessa casa tem lugar.

Mas me pergunto por que ainda não encontrei o meu?

XXXVII

Recordo-me que havia uma cisterna nos fundos da casa de meu avô, era um lugar proibido para os menores, tanto que havia uma porta de madeira velha, com dobradiças enferrujadas e um grande cadeado que enlaçava uma grossa corrente, tudo para proteger os mais corajosos do perigo. Meu avô desafiava minha coragem, certo dia me perguntou se eu queria ver uma coisa assustadora, como me cobrava a valentia, nunca soube desviar os olhos ou desistir de seus desafios.

Mesmo me borrando de medo, quis saber do que se tratava, era noite e ele colocou suas botinas de trabalho, atravessamos o jardim de minha avó em silêncio, onde eu costumava passar as tardes mais quentes, meu coração batia tão forte que supunha ouvi-lo dentro de meus ouvidos.

Abriu a velha porta, onde todos os meus medos infantis habitavam, era como se fosse visitar os porões do inferno, num movimento rápido ele lançou à distancia a tampa de madeira que cobria um muro circular de tijolos maciços e me convidou a olhar o fundo.

A luz estava fraca, meu medo pulsava e quase conseguia não ver nada, mas num dado momento ele disse: “só saberá onde é o fundo se abrir bem os olhos e fitar atentamente onde a luz se reflete, ali está a água!”

Mal sabia ele que aquela lição era grandiosa demais para aquela noite, só entendi essa frase quando me vi no fundo do poço.

XXXVIII

Quem dera voltar ao conforto de ser esquecida quantas vezes desejar. No passado, Jack, as coisas eram diferentes, mesmo que quisesse me alcançar não tinha tempo ou espaço para mim, exigiam comportamentos superiores de uma pessoa fraca, que se perdia na ira. Brilhava quando queria sumir, e a vontade de abstrair só tornava a fuga mais difícil, quase impossível, diria.

Perdi o visco e a luminosidade que têm todas as mulheres que amam e são amadas, aquilo que me diferenciava das outras de modo momentâneo e ilusório, vejo várias de mim caminhando, indo as compras e se distraindo com coisas frívolas.

Quem dera tudo tivesse medidas exatas e coerentes, quem dera haver lógica nessas perturbações levianas.

Minhas ostentações se diferem das alheias apenas no teor de volatilidade, nada pode alcançá-las, além do estopim de meus próprios olhos.

XXXIX

O aroma de felicidade senti poucas vezes e com tanta propriedade que o distinguiria ao meio da podridão que vivo.

Sim baby, lembro-me do pequeno frasco que me trouxe de Paris e do meu nariz passeando por minha pele para senti-lo, aspira-lo fundo e permanente, como tudo que me ofertara.

A vida é tão bruta que nos endurece e aprendi a ser forte, não só com os becos, nem com as navalhas, mas com meu avô, por vezes com você. O certo é que essa vadia perfumada nos ludibria e nos deixamos levar por tão pouco, ou apenas pelo faro apurado ou enganado, não sei dizer.

A sensação é que alguns banhos são lentos e outros bentos demais, mas certo mesmo é o cheiro de alívio e volatilidade que trazem os sabonetes de motel e nisso não posso mais me iludir.

Tenho cá pra mim que a felicidade tem cheiro de perfume francês, daqueles que basta uma gota pra se perverter, para se entregar a ela sem visgo e sem pudor. Senti seu cheiro de Minancora e mesmo assim quis me entregar, Jack, mesmo assim quis me entregar!

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a vida está tão limpa e parada que periga virar criadouro do mosquito da dengue.

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o que importa o que sua boca diz, bocas e palavras mentem para se livrar da culpa, numa tentativa inútil de fazer fardos mais leves. sei que cá em meu desespero sinto apenas solidão e desprezo.

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A verdade é que é tudo muito relativo, baby!

Suas andanças me aguçaram o sentido, todas as suas cartas traziam fragrâncias e olhares diferentes. Cada palavra sua, mesmo que impressa em papel sujo, por vezes salgado trazia um laço, uma linha que nos mantinha unidos de alguma maneira.

O certo é que sei que se foi, pois as cartas pararam de chegar e já não sabia mais a quem recorrer, e essa minha derradeira fala é prova maior de minha desistência, uma tentativa de ter a última palavra.

E nesse ponto mais uma vez estava certo, me sinto reconfortada com a última palavra, tendo a nítida noção que esta jamais chegará até você.

Ao que me lembro era de poucas palavras, embora adorasse escrever-me cartas contando de suas inseguranças e de suas pequenas conquistas e cada porto era uma vitória pessoal, um deslumbramento estrangeiro. No fundo, acho que era isso que admirava em você, a imensa capacidade de se iludir co coisas tolas, mesmo se achando um cético incurável.

A verdade brilha de modos diferentes sob cada prisma, não há como explicar isso, pois o encantamento reside onde as palavras nem sempre podem entrar.