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sábado, março 15, 2008

Carta a Guerra

Caro, Guerra,

Sinto-me muito compadecida das dores que esgarça em sua prima-carta a mim e tentarei decifrar o que está por trás dessa sua máscara da canalhice que insiste em sustentar. Até o maior dos canalhas já curvou sua espinha ao amor, Henry teve sua June, Anaïs teve seu Henry e porque não assumir que ambos amaram a mesma June e assim por diante, como aquele poema de Drummond que citava uma “Lili que não amava ninguém”, haveria um amor secreto, mal resolvido, não comprometido ou proibido? Como afirmar que não há amor?
Não creio haver um ser polarizado à esse extremo e como já me confessara a boca miúda, esse seu jeito malvado, sarcástico é uma maneira de revidar as dores que já te causaram, mas será que ainda não causam, estaria imune a tudo?
Mas tentando encontrar o cerne do que te moveu a me escrever nobre escrita, creio que seja o mesmo que me moveu a responder-te, a curiosidade. Como é inconcebível a mim existir um ser como te pinta, devo ser objeto de curiosidade aos teus olhos. Ou talvez sejamos óbvios demais, tanto que nos dissimulamos em primeiras pessoas, personagens que talvez queiramos alcançar.
Aqui, Seu Antônio e Dona Edna são donos da mercearia mais próxima de minha pequena propriedade, me conhecem por nome, e por sobrenome pela conta da caderneta de acertos de fim de mês, faço as compras e o filho deles vem trazer até dentro de minha cozinha, outro dia eu tão cheia de trabalho o menino me perguntou: “- dona Pagu, quer que eu guarde os frescos na geladeira? - Veja e diga que não é gentileza, se não há amor nesse pequeno ato!
Nem mesmo aqui estamos livres das modernidades, há uma drogaria em cada esquina e o posto de saúde distribui camisinhas e pílulas gratuitas a todos os moradores cadastrados ali. É fácil adoecer, pois agora há entrega a domicílio.
Minha avô é enfermeira, meu avô dentista e moravam numa fazenda separada por uma ponte e cinco quilômetros do vilarejo mais próximo, isso há uns sessenta anos atrás, eram eles os médicos da região, não existia penicilina, pensa que as pessoas ficavam doentes como ficam hoje? Davam xarope pra tudo e pinga para extração dentária e era aquela profilaxia que salvava o povo de toda região.
Não creio que acredite mesmo que eu viva em uma redoma ou em uma estância, como os sanatórios de antigamente, conheço bem as tais biscates e não acho nada feio o que elas fazem, pois é exatamente o que fazemos todos, nos vendemos a todo momento, para um emprego, para o gerente do banco, para o professor da faculdade, para o escritor que admiramos, talvez alguns até sem saber, inocentemente, diria. Se é que essa palavra pode ser usada em nossa raça após os dez anos de idade, ou até antes disso. Vi em algum desses programas da Discovery que aprende-se a mentir com quatro anos.
Numa família como a minha, vinte e um tios maternos e dez tios paternos, é difícil encontrar uma anima que não se encaixe em um deles, ou em meus oitenta e seis primos primeiro, entende? A raça humana me cerca em família, por isso tento um pouco de isolamento,conheço de cor e salteado esses mundinhos provincianos!
Aos fatos cotidianos brindo com sangria e Nelson Rodrigues.
Lembra das biscates? Acho que já fui uma e convenci um resoluto solteiro a ficar comigo, porque eu o amava, e nos casamos de papel passado e tudo. Não pense que usei o velho truque da barriga, porque esse não funciona mais, há mais filhos sem pai e sem mãe, criados por avós, tios, abandonados e em casas de adoção, do que sonha nossa vã filosofia! E nessa era da falta de amor pelos filhos e não vou nem citar esse que a mídia está veiculando para fazer um marketing familiar, pois a filosofia é: “apedrejem as putas, os fariseus com seus rabos e esqueçam os meus!”
Já tive vinte quatro anos, já fui viçosa, cheirava como uva e já julgava saber de tudo e ser inatingível. Não que tenha mudado muita coisa, além da lei da gravidade. Sou uma balzaquiana, me cuido e cheiro bem ainda, mas as coisas em minha cabeça mudaram muito, talvez pelo fato de ter uma filha, a vida deu-me sela, cabresto, convenções e chicotes, o que não me impede de fazer o que gosto, o que quero.
Não estou minimizando os problemas, nem as bandalheiras humanas, elas existem!
As mulheres mentem, mas os homens também! Brincamos de meu amorzinho, mas ama-se de verdade também, mas como nada é para sempre e nem todos encaram isso. Vive-se de aparências e as máscaras por vezes são mais confortáveis que nossa cara nua, sim!
Não só os poetas e loucos mentem, nós temos coragem o bastante para admitir isso.
Por isso meus amores são os poetas, os que brindam e comungam com a palavra sem desferí-la como arma letal, machucam-nos, sim, mas a dor é mola humana.
Se nos mudarmos para Londres, para Paris, ou para o quinto dos infernos, que seria a nós mais apropriado, seria tudo do mesmo jeito, só que em língua diferente.
Se não sangramos, se não sofremos, se não choramos, se não rimos, se não amamos, que seria a vida, meu caro amigo das letras?
O que seria da nossa escrita?

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